Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Como ultrapassar todos os limites

O reality show, em tradução literal, seria o ‘espetáculo da realidade’, porém é um gênero de programa televisivo no qual são transmitidas situações dramáticas ou humorísticas, sem script, e os protagonistas passam por situações como se fossem de suas vidas reais. Em volta dessas situações se constrói uma estrutura através da qual, por votação, os participantes são mantidos, ou eliminados, sendo o vencedor eleito pelo público através de SMS, recebendo prêmios em dinheiro, contratos televisivos, discográficos etc.

Teriam começado juntos com a própria televisão, mas somente no final dos anos 1990 conseguiram uma imprevista popularidade, com grande destaque para o chamado Big Brother (Grande Irmão), no qual as pessoas são fechadas em uma casa e vivem seus conflitos.

Na Itália, além desse, existem mais umas quatro dezenas de reality shows. Podem ser escolhidos desde Ilha dos Famosos, no qual pessoas conhecidas do grande público são deixados em uma ilha e devem sobreviver às próprias custas, até Mundo de Mulher (cujo título diz tudo), passando pela vida em uma fazenda ou em uma casa de repouso para anciãos.

Inventora do Big Brother

Nesta quarta-feira (30/5), o jornal La Repubblica noticiou que um reality show ia pegar pesado. A manchete foi a seguinte: ‘Holanda, eis o reality-choc, se vence um transplante de rim’.

No Big Brother disputa-se a fama, mas no programa que irá ao ar na sexta-feira o prêmio é a vida. O público deverá escolher entre três concorrentes qual ganhará um órgão de que desesperadamente tem necessidade para sobreviver: um rim, que Lisa (o sobrenome ficará incógnito), uma mulher de 37 anos, doente terminal de câncer, decidiu doar depois da morte.

Todos os três concorrentes estão em tratamento de diálise com urgente necessidade de submeter-se a um transplante. O show consiste em um competição na qual cada um dos três deverá convencer Lisa que o rim, por várias razões, deverá ser dado a ele: o público, de casa, poderá votar através de SMS, influenciando a decisão final da doadora. A vida para um e a morte para os outros dois – portanto, é de se prever uma audiência recorde.

O programa foi produzido pela Endemol, uma firma de produções televisivas sediada na Holanda que se tornou famosa por ter inventado o Big Brother, a emissão-mãe de todos os programas do gênero, e recentemente foi comprada por Silvio Berlusconi, ex-presidente do Conselho de Ministros da Itália e proprietário da Mediaset, a maior rede de televisão privada italiana.

Um grande embuste

A notícia caiu como uma bomba, cujo explosivo foi uma mistura de surpresa, incredulidade, indignação e, no final, medo de que o cinismo mediático, tendo dado nos últimos anos provas de inexaurível ferocidade, pudesse realmente parir um monstro desses.

Na quinta-feira (31/5), logo pela manhã, num programa jornalístico na RAI 3 (rádio), foram entrevistadas algumas pessoas que entendem do assunto. O parecer mais equilibrado foi de um nefrologista especializado em transplantes, que foi bem claro ao afirmar que não há a mínima possibilidade de transplante de um órgão que provenha de um doente terminal de câncer. Mas esse parecer abalizado não teve repercussão.

Como previsto, na sexta-feira, um programa chamado Big Donorshow, sob condução de Patrick Lodiers, foi ao ar na televisão holandesa BNN. Mas verificou-se que era somente uma mise-en-scène macabra. Lisa, a moça de 37 anos doente terminal, está cheia de saúde e é uma atriz até então ignorada pelo público. Lodiers garante que os doentes são reais, mas que ‘a cena foi feita para chamar a atenção da opinião pública para a vida e os problemas desses doentes’.

Um escárnio inqualificável, de péssimo gosto, mesmo se – como quer fazer entender a produção do programa – ‘de nobre escopo’. Na realidade, o que objetivava era prender milhões de espectadores aos seus aparelhos às 9 horas da noite.

O grande embuste foi idealizado pelo grupo Endemol para que coincidisse com o quinto ano da morte do fundador da BNN, Bart de Graaff, que esperou em vão por sete anos um doador de rim. Desse lamentável fato, ficou a certeza que a BNN não seguiu o princípio básico do jornalismo: o de acima de tudo respeitar a dignidade humana.

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Jornalista