Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Cuidados com a doença infantil do esquerdismo

A imprensa não pode falhar. Sobretudo numa sucessão de escândalos e denúncias de escândalos iniciadas pela própria imprensa. O mesmo cuidado devem ter os observadores da imprensa – delírios conspiratórios, palavras de ordem ideológicas e achismos diletantes só servem para confundir um quadro naturalmente atravancado pela quantidade de desdobramentos, pelo exotismo das situações, volume de dinheiro, tamanho do elenco de implicados e, sobretudo, pela extensão das ruínas.


Este Observador vem chamando a atenção desde os primeiros sacolejos desta sofrida temporada para uma série de irregularidades jornalísticas. Isto não deve significar um convite à atenuação das infrações (ou ilicitudes, para o usar o eufemismo do momento) escancaradas de forma tão clara e assustadora.


A tentativa de minimizar esta tragédia política ou, ao contrário, de agravá-la com a injeção das velhas toxinas ideológicas pode ser válida na esfera da luta partidária, mas é inconcebível na delicada tarefa de monitoração dos comportamentos e procedimentos jornalísticos.


Convém lembrar sempre que a crítica da mídia nos EUA conseguiu alçar-se do ambiente acadêmico para o debate público no final do caso Watergate, quando a sociedade americana sentiu necessidade de criar um antídoto para eventuais triunfalismos. A grande imprensa derrubou Nixon, mas foi o debate sério sobre o exercício do jornalismo que impediu abusos e distorções posteriores.


Lambuzado de melado


No caso brasileiro, a imprensa não é o instrumento da investigação, é apenas o veículo das revelações, mas ela reflete com inegável fidelidade a antiga premência de todos os segmentos sociais para eliminar a impunidade e a contumaz apropriação dos recursos públicos.


Infelizmente, o expurgo veio a ocorrer justamente num governo de vocação popular envolvido por uma atmosfera de esperanças. Nem por isso justifica-se a utilização de fórmulas simplórias importadas da Venezuela para diabolizar a grande imprensa.


Não foi a direção da Veja que resolveu investigar a corrupção nos Correios. Ao que tudo indica foi o próprio governo que resolveu escancarar as maracutaias do aliado PTB nos gabinetes da estatal depois do expediente. No meio do caminho, arrependeu-se.


A arriscada arapongagem poderia ter sido um êxito para o governo, mas quem inevitavelmente veicularia a denúncia seria um grande órgão de imprensa – o governo não assumiria um ataque frontal ao aliado que se beneficiava das negociatas. Se o tiro saiu pela culatra, a culpa não pode ser atribuída às elites nem à imprensa reacionária.


O que houve de errado na divulgação do vídeo da propina pela Veja (e se não fosse ela seria outro semanário ávido para recuperar o antigo status do segmento) foi a explicitação da perigosa interlocução imprensa-poder (poder político ou poder econômico, geralmente os dois) visando a manipulação da opinião pública.


O engavetamento da denúncia da IstoÉ Dinheiro em setembro de 2004, graças à generosidade do lobista Marcos Valério, faz parte desta mesma interlocução (ou promiscuidade) – no sentido contrário. Interessava ao poder político/econômico abafar uma acusação capaz de derrubar a rede de negócios politico-partidários que parecia tão sólida e confortável.


Se o lobista mineiro não estivesse deslumbrado pela dinheirama fácil, ao saber que uma editora de revistas descobrira o fio da meada imediatamente faria soar os alarmes para desativar os esquemas espúrios. Ao menos temporariamente. É possível que Marcos Valério o tenha feito, mas é possível também que, na ponta palaciana, alguém possuído pela infalibilidade dos deuses tenha argumentado que a mídia não precisa ser controlada, basta irrigá-la com favores.


Mais uma vez: não foi a elite neoliberal em parceria com a mídia conservadora que aproveitou-se da fragilidade de um partido de inocentes idealistas. Foi a máquina nada inocente dos apparatchiks de um partido outrora impoluto que recusou-se a abrir mão das prodigiosas facilidades e resolveu eternizar a bandalheira.


Acordo com o entrevistado


Pode-se dizer que as relações da mídia com a Presidência foram sensivelmente alteradas a partir do fim de semana 16-17 de julho. Até então o presidente da República encontrava-se naturalmente protegido das metralhadoras acusatórias e dos ventiladores ensandecidos.


A surpreendente entrevista do presidente Lula, ao final do seu séjour, a uma desconhecida documentarista free-lance residente em Paris serviu apenas para avariar a sua blindagem e trazê-lo para perto dos acontecimentos.


A intenção do release-televisivo era obter uma afinação para o coro das partes envolvidas nos escândalos (o PT, o governo e o lobista Marcos Valério), mas a armação foi tão rudimentar e tacanha que acabou por desnudar a própria partitura, isto é, a estratégia de defesa.


Não foram as elites nem os endinheirados que bolaram a jogada para desmoralizar a classe operária. Muito menos a mídia subserviente. Ao contrário: a mídia (no caso o Fantástico, da Rede Globo) foi usada para divulgar aquela autêntica ‘cascata’ televisiva.


Para a mídia seria muito confortável manter o presidente Lula na confortável posição au-dessus de la mêlée (acima da confusão), mas os trapalhões acabaram por empurrar Sua Excelência para o meio da liça. Com o agravante de que, nesta barafunda, ele acabou por confessar uma infração (ou ilicitude) no âmbito eleitoral.


E quem foi convocado para socorrer os autores intelectuais da trapalhada – Hugo Chávez? Não: a Folha de S.Paulo (sexta, 22/7). Nos dias anteriores o jornal foi implacável com a aquele híbrido de jornalismo e comercial. De repente, guinou à esquerda e acolheu candidamente, sem comentários, o incrível relato da vedete do jornalismo que conseguiu uma exclusiva com o Presidente da República [‘Fiz o que todo jornalista deveria fazer’, artigo de Melissa Monteiro; clique aqui e role a página para ler a íntegra].


Ao revelar que os assessores da Presidência começaram a berrar quando descobriram que quebrara o acordo e fizera perguntas sobre a crise política nacional, Melissa Monteiro cometeu no mínimo uma infração (ou ilicitude): admitiu um acordo com o entrevistado, coisa que jornalista sério não faz. Na verdade, a suposta quebra de acordo foi inventada para amortecer o conteúdo da entrevista e deixar todos bem. Sobretudo o setor palaciano de imprensa.


Dinheiro do contribuinte


A benevolência da Folha neste caso contrasta frontalmente com a brutalidade que empregou na edição de domingo (24/7), ao enfurnar o protesto do deputado José Dirceu contra o ‘linchamento moral’ a que está sendo submetido por parte da imprensa.


O protesto foi publicado apenas em parte da tiragem da edição e mesmo assim ficou escondido num pé-de-página (A-11), quase ilegível num minúsculo corpo 4 e sem qualquer comentário.


A mesma nota, no entanto, foi lida e respondida na edição de sábado do Jornal Nacional, que vai ao ar às 20h15.


O comportamento da Folha foi tão espantoso que provocou um comentário no Painel do Leitor da edição de segunda-feira assinado pelo arquiinimigo de José Dirceu, o ex-secretário da Presidência no governo FHC, Eduardo Jorge Caldas Pereira [veja sua carta nesta rubrica].


A ele, a Folha privilegiou com uma Nota da Redação na qual justifica a falta de reação ao protesto de Dirceu: a matéria chegara tarde, quando a edição estava fechada.


E aqui volta-se à questão do delírio ideológico que começa a permear a crítica da imprensa justamente num momento em que deveria imunizar-se de qualquer comprometimento partidário. É inconcebível que os jornalões brasileiros tratem suas edições de domingo – as mais rentáveis e as mais lidas – com um descuido que chega ao descalabro. Sobretudo numa situação de crise como a que atravessa o país.


Se não há recursos para manter a principal edição da semana minimamente atualizada e qualificada é melhor assumir logo que os diários brasileiros não são diários: têm duas edições de sábado e não saem aos domingos.


José Dirceu pode não ter razão no protesto que divulgou, mas no momento em que o ex-todo-poderoso está sendo acusado com tanta intensidade é legítimo conceder-lhe o direito de defesa. Se não por justiça, ao menos como retribuição por sua boa vontade quando estimulou o governo Lula a abrir uma linha especial de crédito para as empresas de mídia à beira da insolvência.


A atual avalanche de ‘Informes Publicitários’ pagos com dinheiro do contribuinte para defender organismos e empresas estatais confrontados com acusações é outro acinte que escapa aos egressos da Guerra Fria e agora encarniçados críticos da mídia.


A doença infantil do esquerdismo, aparentemente extinta, está de volta. Montada em sofisticados Land Rovers pagos por empreiteiros.