Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Defesa esquizofrênica de interesses alienígenas

Em seu editorial intitulado ‘Mercosul ideologizado’ (sexta, 25/7), o Estado de S. Paulo, a propósito da intenção de Lula, como presidente rotativo do mercado comum em construção na América do Sul, de ampliá-lo mediante participação de todos os países sul-americanos, do Caribe à Patagônia, inclusive Cuba, destaca que o moderno capitalismo se desenvolve ao largo de atitudes nacionalistas como as que pregam o presidente Hugo Chávez, da Venezuela, considerado, pelo Estadão, o próprio diabo em pessoa, patrocinador, em seu país, de métodos antidemocráticos, apesar de, sob a presidência dele, os venezuelanos terem se pronunciado democraticamente via plebiscito inúmeras vezes para aprovar a Constituição nacional e reformas políticas internas.

Trata-se de miopia braba. O mais recente fracasso da rodada comercial de Doha ocorre justamente por conta de posições nacionalistas de países europeus, no âmbito da União Européia, resistentes à abertura comercial. Impedem, dessa forma, que a produção agroindustrial mais competitiva dos países capitalistas periféricos, como o Brasil, se realize por meio das exportações. Como tais países não podem consumir o excedente interno por conta das contradições do próprio capitalismo, expressas na concentração de renda que produz insuficiência relativa de demanda global, historicamente, construída por meio da dominação colonial, entram, naturalmente, em parafuso, sendo obrigados, para sobreviver, a pensar, também, do ponto de vista da defesa do seu mercado.

O nacionalismo europeu no campo agroindustrial é tão grande que raia a xenofobia. O mesmo acontece com os Estados Unidos, que resistem à abertura agrícola com um discurso combinado com a Europa, dizendo que só abrem suas fronteiras se os europeus fizerem o mesmo. Como são os donos do mundo, fixando as regras monetárias que os demais têm que seguir, o resultado é uma farsa montada para esmagar as economias subdesenvolvidas ou em processo de desenvolvimento, impedindo-as de viver a pregação fantasiosa dos países ricos defensores do livre mercado para eles, não para os outros.

Vozes conservadoras

O Estadão, que vê capitalismo moderno no nacionalismo xenófobo praticado pela comunidade européia e pelos Estados Unidos, mas não vê o mesmo em face das posições nacionalistas defendidas por Lula, Chávez, Fidel Castro, Evo Morales, Néstor Kirchner e Tabaré Vásquez, fica numa situação esdrúxula. Vocaliza interesses alienígenas enquanto infrutiferamente tenta inviabilizar, com suas posições ultraconservadoras, o espírito de resistência do Mercosul contra as investidas do nacionalismo europeu e americano, protetores dos seus mercados agrícolas, enquanto pregam abertura ilimitada das economias dos países periféricos aos seus produtos industriais.

Esquece o velho Estadão que o ensaio nacionalista europeu materializado na União Européia se fortaleceu mediante criação de um Banco Central Europeu que determina taxa de juro baixa para que os capitais da Europa penetrem nas economias periféricas comprando empresas a preço de banana, na medida em que os países onde elas se inserem agressivamente ficam na obrigação de cumprir as regras que eles, os poderosos, determinam: câmbio flutuante e regime de metas inflacionárias, receita certa para enfraquecer o capital produtivo nacional frente ao capital especulativo que o adquire na bacia das almas.

Agora, quando Lula e seus companheiros presidentes dos países integrantes do Mercosul, mais aqueles que entrarão para o bloco, a fim de fortalecê-lo ainda mais, defendem a criação de um Banco da América do Sul, proposta de Hugo Chávez, e uma moeda comum latino-americana, começando pela convergência inicial entre o real e o peso, como quer o titular do Planalto, por sugestão do ministro da Fazenda, Hugo Mantega, as vozes conservadoras, como a do Estadão, se elevam para condenar o xenofobismo nacionalista latino-americano que tenderia a espantar o capital externo dos países da região.

Construindo uma fantasia

É evidente que se o Banco da América do Sul for emitir a moeda latino-americana, brevemente, ela ganhará relevância internacional dada pelo conjunto da economia dos países sul-americanos, do Caribe à Patagônia, cujo fortalecimento ocorrerá por força mesma dessa determinação coletiva, como é próprio das grandes decisões políticas, a exemplo do que aconteceu com a comunidade européia, hoje ancorada no euro, que ameaça os próprios Estados Unidos.

Não foi à toa, portanto, que Fidel Castro, durante a reunião em Córdoba, previu que o Mercosul, com moeda comum emitida por um banco regional sul-americano, avalizada pelos sócios do bloco comercial, será transformado em poder mundial.

No momento em que o Brasil se afirma por deter o poder da biomassa, que substituirá o petróleo ao longo do século 21, quando as reservas fósseis se esgotarem; em que os povos latino-americanos percebem que quanto mais se fala contra o Mercosul mais se torna necessário que ele se afirme por representar receio dos demais que temem a força da América do Sul como economia sustentável em suas próprias forças; em que a consciência regional se expande no compasso do fracasso neoliberal para equacionar adequadamente os desníveis sociais, econômicos e políticos regionais, enquanto destrói populações inteiras lançadas à miséria e à exclusão social – é um disparate o Estadão afirmar, pomposamente, que o xenofobismo nacionalista que ganha cores ideológicas no contexto do Mercosul vai na contramão do moderno capitalismo que se desenvolve no âmbito dos mercados comuns articulados por outros povos, como o europeu.

É querer construir uma fantasia no exterior da própria realidade. Esquizofrenia ideológica pura.

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Repórter do Jornal da Comunidade, Brasília