Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Delacroix e a violência dos debates sobre a violência

Ao comentar um texto do sr. Alberto Dines [http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=455JDB001], assim me manifestei:




‘Caso se deseje ter em mente algum quadro de Eugène Delacroix que ilustre o problema da violência nos tempos hodiernos, não será n’A liberdade guiando o povo (1830), um quadro em cores escuras, lúgubres, em que há uma sublevação por uma causa,mas sim n’Os fanáticos de Tanger (1838), um quadro em cores claras, luminosas, no qual uma multidão se move da direita para a esquerda da tela, completamente desenfreada, arrastando tudo quanto se coloque no seu caminho, sob os olhares atônitos dos que os contemplam do alto das construções. Nem cabe falar, aqui, na fúria decorrente dos interesses de classes antagônicas (em meio aos fanáticos, um homem está tranqüilo sobre o dorso de seu cavalo), porém, simplesmente, de uma fúria dirigida a todos os que não estejam participando de tal movimentação. Grande parte da tela, na parte inferior, está tomada pelos fanáticos. Uma mulher e um menino, assustados, correm em direção à esquerda. Na parte restante da tela, predomina um grupo de pessoas que olha para a procissão, em atitude serena, enquanto ela avança. Um homem procura proteger duas crianças, próximas a uma esquina. No ponto em que a vanguarda dos fanáticos aparece, há algumas pessoas a eles se dirigindo com atitude agressiva, o que contrasta com a atitude plácida dos que encaram a procissão. Agressividade, porém, impotente, diante do avanço incontrolável da fúria irrefreada.’


Por que Delacroix (1798-1830), perguntar-me-ão? Porque nenhum outro pintor soube, antes dele, converter as telas em verdadeiros canhões, municiados com as tintas que, ao se espalharem pelas formas dinâmicas ali postas, refletiram o homem tanto nas suas emoções mais nobres como nas suas emoções mais vis. A troco de que viria esta divagação aparente?


Torcidas organizadas


Viria, em realidade, a partir dos debates que se travaram em torno de um episódio que seria dos mais corriqueiros na vida social brasileira – um indivíduo de classe média que teve seu relógio subtraído por um ladrão na cidade de São Paulo – se a vítima não fosse o apresentador Luciano Huck, e se não tivesse sido instaurado um debate em nível tão rebaixado, como sói acontecer com os debates destes fatos no país. Com efeito, uns, a bradar por maior endurecimento nas leis criminais, sustentando que, a partir daí, qualquer debate sobre a questão social mais não seria do que a ocultação ‘politicamente correta’ do que não ultrapassa os limites do caso de polícia. Só faltou enunciarem às claras o famoso ‘à ralé, caridade ou polícia’. Outros, vendo na subtração do relógio do apresentador a expressão de uma atitude semelhante à do lendário Robin Hood (ou, acrescento, os reais Jesse James e Lampião, que já não têm a cercá-los tanta simpatia), a revolta contra a situação de opressão representada pelo apresentador desfilando com o seu artefato, como se ele, efetivamente, merecesse tudo o que significasse um ataque dos despossuídos ao seu patrimônio.


Em suma: um verdadeiro pugilato no qual as torcidas organizadas se postam, cada qual desejando a destruição dos adversários. Tudo ficou, de um modo geral, em termos de ‘doutrina do egoísmo’ versus ‘doutrina da inveja’, para usarmos as expressões com que uns e outros se entre-mimoseiam. As torcidas organizadas, embora se antagonizem, unem-se, paradoxalmente, por uma mesma lógica: ‘Aos amigos, tudo, aos indiferentes, a lei, aos inimigos, nem esta.’


Efeitos colaterais


Em meio a tudo isto, o pronunciamento do sr. Luís Weis [Idéias que levam ao inferno. http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/blogs.asp?id_blog=3&dia=13&mes=10&ano=2007 e Tolerância zero com a incivilidade. http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/blogs.asp?id={D87CC765-B208-4E8A-B08B-AC1E4F09A3F6}&id_blog=3], corretamente observando que se concordar com a prática do crime seria o retorno à barbárie, isto não significa que combatê-lo seria a defesa da civilidade, dado que existem formas e formas de se o combater. E, certamente, a mais civilizada não seria a do ‘Esquadrão da Morte’. Também o pronunciamento do sr. Alberto Dines [http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=454JDB007, http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=455JDB001 e http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=455JDB007] vem a se colocar, enfrentando o renascimento do espírito dominicano – aqui, no sentido por ele mesmo referido, de quando Dominic (Domingos) de Guzmán, diante do fortalecimento da heresia cátara (ou albigense), criou a Santa Inquisição, no início do século 13, cujos integrantes, além de serem chamados ‘dominicanos’ em homenagem ao fundador de sua Ordem, faziam, por si mesmos, o trocadilho ‘Domini cane’, isto é, ‘os cães (podem ser tanto de guarda como de caça, pois a ferocidade dava no mesmo) do Senhor’ – no sentido de que, se ninguém merece ser roubado – quando nada, porque, constitucionalmente, está a qualquer pessoa garantido o direito de propriedade – ou atingido em sua integridade tanto física quanto moral – também sob proteção constitucional -, por outro, ninguém está autorizado a incitar à violência, seja contra os patrícios, seja contra a ralé. Modo certo, não deixa de ser esta a preocupação que me moveu ao publicar o texto acerca da diferença entre a crítica e o achincalhe, que o leitor sr. Fernando Pinto considerou que teria como título mais apropriado ‘Um convite à tolerância’ [http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=454JDB003].


Muitos que se manifestam contra os efeitos colaterais dos direitos humanos – e, democraticamente, tiveram espaço os que pensam deste modo neste veículo [http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=455JDB005], precisamente porque é um direito assegurado a qualquer pessoa, tanto no âmbito internacional como constitucional, a liberdade de manifestação de pensamento –, usando-os como argumento para liberar a atuação policial, esquecem que a solução por eles preconizada também tem seus efeitos colaterais e que isto não é uma possibilidade radicada no plano puramente teórico, estratosférico.


Frases acacianas


Primeiro, um dado histórico que foi objeto de uma dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul [KEMMERICH, Clóvis Juarez. O direito processual na Idade Média. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2006]. O interesse prático desta obra em que se examina a evolução do processo na Europa desde a queda de Roma ao fim da Guerra dos Cem Anos avulta, eis que hoje voltam discursos que sustentam ser a ineficiência do Estado apta a autorizar os cidadãos a fazerem justiça por suas próprias mãos. A partir do retorno, com o fim da Antiguidade, da admissão da vingança privada, substituível por uma indenização, julgada por uma assembléia popular, em que existiam feitos que, pelo fato de o réu haver sido pego em flagrante, estava proibido de se defender; em que a instrução, freqüentemente, tinha efeitos decisórios, como é o caso dos ordálios, do duelo; em que a disciplina procedimental visava precipuamente à eficientização do exercício da força sobre aquele que viesse a padecê-la, passando pelo renascimento verificado no século 12, quando as glosas ao Direito Romano buscaram, a um só tempo, ofertar maior segurança às partes – limitação do arbítrio – e o fortalecimento da autoridade do príncipe, tornando-o livre da lei humana e fazendo da sua vontade a lei, vem a explicar o porquê da admissão da tortura como meio de prova, o papel desempenhado pelo juramento, e traz também o gérmen – a partir do julgamento de Adão – da tese esboçada por Durantis, no século 13 (mais tarde encampada por Thomas More), segundo a qual mesmo o demônio mereceria as garantias legais (p. 162). O livro contém passagens notáveis, como no momento em que mostra que sem o respeito ao devido processo legal, o poder se converte em medida da moralidade em si e por si, e com tal pressuposto ficam justificados, inclusive, ‘ataques preventivos’ (p. 30), a falibilidade do resultado dos ordálios como instrumento de reconstituição da verdade dos fatos (p. 70), principalmente ante as exigências de segurança para o comércio que se ia desenvolvendo à margem dos feudos (p. 118), o caráter de lei conferido ao que agradasse ao príncipe (p. 74 e 144), a centralização no papa do poder jurisdicional em matéria religiosa, a partir de Gregório VII (p. 102), o trabalho desenvolvido pelos canonistas para o efeito de demonstrar a ortodoxia do abandono das fórmulas introduzidas pelos bárbaros germânicos (p 104), o embate entre os místicos – defensores dos ordálios, em que o julgamento decorreria de fatores estranhos ao controle humano e, portanto, da vontade de Deus – e os dialéticos, defensores do contraditório exercido pela demonstração lógica (p. 127), a contribuição da revalorização do Direito Romano para a judicialização da execução, que aos inícios da Idade Média era levada a cabo pessoalmente pelo credor (p. 56 e 138-137), a possibilidade deferida ao papa de condenar, nos crimes ‘notórios’ contra a religião, sem processo (p. 148-150), em suma, demonstrando, por outras palavras, a experiência histórica de situações cujos efeitos foram tais que se as abandonou, mas que uma sociedade assustada em um mundo que praticamente perdeu as suas referências ressuscita o homem amedrontado da Idade Média. Como se vê, o texto do mestre em Direito Processual pela UFRGS, em realidade, mais que um estudo de processo e um estudo de história muito bem fundamentado ao longo de sua exposição, traduz um alerta para todos nós, que vemos trazerem à vida cadáveres insepultos cuja negação foi responsável pela criação do Estado de Direito em todas as suas manifestações. A idéia de se legitimar a exclusão de direitos, ao argumento da suposta ausência de virtude do padecente ou de este ser uma ameaça aos homens de bem, como se tal não fosse a preparação da redução do círculo dos beneficiários da ordem jurídica é bem uma ilustração de uma das frases aparentemente acacianas que se contêm na obra ora resenhada, merecedora de todo acatamento (p. 26): ‘A ignorância da história e a falta de comparação entre as diversas doutrinas são causas freqüentes de incidência em erros já superados por outros estudiosos.’


Mediocridade ama sofisticação


Como já tive a oportunidade de dizer em outra ocasião, comentando texto do sr. Alberto Dines [http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=454JDB007], ‘com efeito, do fato de que quem quer que cometa um crime tenha de ser punido não se pode inferir que tudo é permitido contra este, porque se tudo for permitido contra quem seja considerado ‘o Demônio’, tudo passa a ser permitido contra todos. O caráter rebaixado do debate já deveria ter sido superado, sobretudo quando se tenha lembrança do caso Jean Charles, curiosamente, recordado pelo próprio Diogo Mainardi na Veja 2030, da edição do dia 17 de outubro de 2007. Mas a troca em nível elevado de posições acerca dos problemas – único meio para os entender, recordando que nenhum problema pode ser solucionado sem ter sido antes entendido, como diria o conselheiro Acácio –, para que efetivamente ocorra, deve ter bem presente a distinção entre o que seja a crítica e o que seja o achincalhe. Diálogo, e não superposição de monólogos’. O que resta saber é quais dentre os efeitos colaterais se está disposto a arrostar.


Iniciei com um quadro de Delacroix e gostaria de terminar com outro, que se mostraria mais próximo do ideal perseguido, inclusive, pelo grande amigo de Chopin, Liszt e George Sand: Ovídio entre os citas. Pintado em 1859, retrata os últimos anos da vida de Ovídio, exilado de Roma pelo auto-denominado Augusto. Os bárbaros citas trataram-no, entretanto, melhor que os civilizados romanos, adotando-o e procurando fazer com que se sentisse bem. Basta reparar na solicitude com que o nômade se dirige ao poeta, bem na parte central da figura, chamando a atenção para um aspecto que surpreende a quem conheça a fama daqueles antepassados dos russos, viventes às margens do Mar Negro, sobretudo pelo que deles narra Heródoto. Os temidos citas, aqui, mostram-se capazes da grandeza, de estarem acima da pequenez romana, voltada exclusivamente à satisfação da febre de conquista. Este quadro, ainda, é uma ilha de suavidade em meio aos vulcões plantados na paisagem pictórica de Delacroix. Em meio a quadros de combates e caçadas, domas de cavalos e recordações de viagem, aqui se tem um poema lírico, trazendo a nostalgia que o homem civilizado tem da natureza, tema tipicamente romântico que certo psicologismo identificaria, com toda a certeza, com uma espécie de nostalgia do seio materno. Mostra, entretanto, a proximidade, a cumplicidade que existe entre o homem de gênio e o homem simples – Ovídio é alimentado com leite de égua, base da dieta dos citas. É interessante, ainda, observar que quem dirige nossos olhos para o poeta é um menino, que para ele sorri, apoiado em seu cão, a exprimir que o gênio só é acessível pela pureza e fidelidade. A mediocridade ama a sofisticação, mas despreza tanto o que está acima do seu entendimento como o que parece simples. Talvez porque o medíocre ama aquilo que o faz parecer mais do que aquilo que é.

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Advogado, Porto Alegre, RS