Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Desregulamentação abre desafio de reorganização

‘Do caos nascerá uma nova ordem!’ (Mikhail A. Bakunin, 1814-1876)

Quando um grupo de jornalistas brasileiros liderado por Gustavo de Lacerda, em 1908, resolveu criar no Rio de Janeiro, então capital federal, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), muitos dos intelectuais da época, atrelados ao patronato local, tentaram desqualificar a iniciativa taxando os líderes do movimento de ‘anarquistas’. Desinformados ou por pura maledicência, mal sabiam eles que os jornalistas fundadores da ABI adotavam os ideais libertários que mais caracterizam o pensamento e a prática anarquista: a livre organização e a autogestão.

Faço esse preâmbulo para deixar transparente minha simpatia por esse ideário, muitas vezes confundido como promotor da desordem e do caos. Mas na verdade, o pensamento libertário se apropria de aspectos da Teoria do Caos, originada nas áreas da física e da matemática, para tentar explicar o funcionamento de sistemas complexos e dinâmicos.

Se usarmos a argumentação anarquista sobre caos para tentar propor alternativas (e entender) ao processo de desregulamentação da profissão de jornalista, cujo tiro de misericórdia foi dado há algumas semanas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), poderemos enxergar um pouco além do momento de desordem e desencanto por que passamos todos que investimos nas academias universitárias como locus de legitimação de um saber e de aprendizado de uma práxis para o exercício profissional em jornalismo.

Interferência direta do judiciário

Nosso esforço inicial tem se concentrado em diagnosticar a conjuntura econômico-político-social em que se dá a efetivação desta desregulamentação, entendendo, fundamentalmente, que o STF significa apenas um elo da cadeia ideológica que investe no caos organizacional do mercado de trabalho brasileiro. O STF funcionou nesse episódio tão somente como aquele capanga que recebe a ordem para eliminar a freira indefesa ou o seringueiro incômodo numa emboscada na floresta.

Em todos os momentos da história da moderna civilização, os aparelhos ideológicos do Estado (Louis Althusser, 1918-1990), aí incluídas as assim chamadas ‘supremas cortes’, foram idealizados com o propósito sublime de ordenar o que estava ‘desordenado’ e de desordenar o que naturalmente sempre esteve ordenado, equilibrado e em perfeito funcionamento. Ordem e desordem, portanto, são faces da mesma moeda simbólica em que a sociedade humana funde seus anseios de evolução planejada.

A desregulamentação da nossa profissão mostra ainda um outro aspecto da organização capitalista atual: aquele em que, por pressão dos poderes econômico e político, ocorre uma interferência direta do campo judiciário na organização da classe trabalhadora que, por sua vez, havia sofrido anteriormente uma regulação organizativa imposta por este mesmo aparelho de Estado.

Corporativismo exacerbado

Neste contexto, é preciso observar que o surgimento das escolas superiores de jornalismo ocorre em plena vigência do regime de exceção imposto ao país pelos militares, a partir de 1964. Desse ponto de vista, é inevitável observar que durante as últimas cinco décadas essa categoria de trabalhadores se beneficiou de uma reserva de mercado puramente artificializada, em decorrência da formação de bacharéis comunicólogos especializados em Jornalismo.

Apesar desta imposição academicista durante todo esse período, nossa categoria viveu uma espécie de hibridismo corporativo, onde diplomados e não-diplomados conviveram quase que harmonicamente na disputa pelas vagas nas redações da mídia tupiniquim, especialmente nas funções ‘menores’ do jornalismo diário, como as de diagramador, repórteres-fotográficos e cinematográficos, chargistas etc. A presença dos sem-diploma, entretanto, floresceu nas atividades de colunismo social e na sub-categoria de colaboradores.

Na Paraíba, a presença dos rábulas do jornalismo foi tão marcante, insistente e perniciosa que o sindicato dos trabalhadores foi entregue, há quase duas décadas, às lideranças que emergiram desse vácuo deixado pela legislação dos ditadores, que dava garantias aos que atuavam no mercado sem habilitação no ensino superior.

O corporativismo exacerbado desse grupo talvez tenha sido a principal razão pela qual a sociedade poucas vezes teve notícia de algum processo levado a cabo contra jornalistas (diplomados ou não) nas instâncias dos conselhos de ética dos sindicatos da categoria laboral.

Trocas simbólicas e ideológicas

Agora deparamos com mais uma encruzilhada regulatória e nos pegamos diante de mais uma escolha histórica. A desregulamentação da nossa profissão impõe aos jornalistas outra vez um teste de identidade corporativa, classista e ideológica. Temos, finalmente, nova chance de acertarmos o compasso do jogo da luta de classes.

Precisamos, antes de tudo, nos enxergarmos como apenas mais uma categoria trabalhadora na estrutura capitalista da assim chamada indústria cultural (ou, se preferir, indústria midiática). É preciso sepultar, juntamente com o velho engodo de que éramos o quarto poder na sociedade, a fidalguia de categoria insubstituível, acatando a impermanência das coisas. ‘Tudo que é sólido desmancha no ar’, lembra-nos uma antiga máxima marxista.

Para os que defendem que vivemos uma época de pós-modernismo, faz-se necessário compreendermos a liquidez da configuração laboral de uma categoria que está no centro da produção simbólica padronizada, centralizada num modelo de comunicação autoritário e predeterminado pelas exigências das corporações que disputam espaço e poder de fala na esfera pública midiatizada.

É nesse sentido que se torna imprescindível que propunhamos um modelo novo de categoria trabalhadora comunicacional. Uma nova ordem organizativa de um grupo de trabalhadores incumbidos de produzir artefatos comunicacionais que dêem conta das trocas simbólicas e do intercâmbio ideológico que se processa nas entranhas da sociedade pós-industrial.

Uma aritmética pretensamente científica

É preciso reinterpretar a metáfora macluhaniana (Herbert Marshall McLuhan, 1911-1980) que propugnava que a mensagem é o meio, ao perceber que o mensageiro tornou-se escravo dos meios, ou pior, transformou-se também neles. É sob essa lógica que vimos os mitos de verdade e de realidade serem desautorizados presentemente, uma vez que o conceito de verdade está inegavelmente atrelado ao lugar de produção do discurso coletivo. E que a construção simbólica de realidades vincula-se inexoravelmente ao sabor dos que detêm os meios de produção da comunicação coletivizada.

É nesse contexto matrixiano que os pilares deontológicos de sustentação do jornalismo, como neutralidade, objetividade e imparcialidade, foram sendo desmontados pelo cinismo corporativo do agendamento difusionista dos fatos de interesse da assim chamada coletividade. Um cinismo que penetrou de forma sorrateira na preparação dos acadêmicos de Jornalismo, que nas derradeiras décadas foram sendo adestrados tão simplesmente para ocupar a tarefa do convencimento social midiático através de uma aritmética pretensamente científica, onde o que importa apenas é manejar discursos para identificação de quem, quando, onde e por que.

Informação como possibilidade de emancipação

Assim, juízes, sindicalistas e acadêmicos se somam na grande manobra de desmantelamento e desmoralização da nobilíssima arte-ciência-magia do jornalismo pós-democrático e pluri-diplomado. Vivemos a desconstrução do Clark Kent infalível, digno de credo, onipresente e indispensável à sensação de monitoramento fiel das verdades imprescindíveis à agregação e evolução em sociedade.

Constatado o engodo secular, o que resta aos desenganados trabalhadores da mídia neocibernética? Ora, elementar: cabe protagonizar um novo modo organizativo, onde diplomas e certificados do domínio cognitivo não sejam o eixo do nosso orgulho utilitário. Talvez ainda haja tempo de repetirmos o sonho libertário dos companheiros de Lacerda para reinventarmos um novo modelo associativista, baseado na livre organização, na autogestão, no apoio mútuo e solidário. Um clube, um sindicato, um grêmio de trabalhadores cientes de sua condição social, de seus limites éticos e estéticos.

Uma nova entidade que agrupe todos os envolvidos no processo comunicacional, seja nas indústrias do entretenimento massivo, seja na construção de processos de produção de conhecimento, na troca de saberes, no intercâmbio livre de idéias, que efetivamente possam construir um novo modelo de socialidade, onde a informação não seja usada como arma ou moeda, mas tão somente como possibilidade de emancipação individual e coletiva.

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Jornalista, bacharel em Comunicação Social pela UFPB, especialista em Gestão da Informação no Agronegócio pela UFJF e mestre em Comunicação pela UFPE