Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Difícil é cortar na carne

Para ser impedido de continuar seu mandato, um presidente precisa ser odiado, despertar profundas antipatias no povo que o elegeu. Um impedimento sem o clamor espontâneo da população seria um golpe. Os meios de comunicação cometem uma injustiça histórica ao levantar a hipótese de impedimento porque hipóteses geram especulações, entrevistas com interessados, interesses diversos e, de repente, pode ser tarde demais para impedir o retrocesso histórico que seria o impedimento do presidente Lula.

O momento que vemos distorcido pela TV, confuso pelos jornais, difuso pelas revistas é muito rico: o governo foi tão competente na punição à corrupção que ‘cortou na própria carne’, meio sem querer querendo. E não foi porque saiu o ministro da Casa Civil ou porque se verificou que o Partido dos Trabalhadores sucumbiu aos velhos costumes da República envolvendo-se em negociatas com políticos, partidos e cidadãos corruptos. É rico esse tempo porque impulsiona o fluxo dos movimentos sociais independentes, porque quem foi educado sob a luz do PT ou sob outras luzes está trabalhando bem, está em ONGs, está no Fórum Social, faz parte da melhor parte da globalização, aquela que trouxe a troca de informações entre pessoas do mundo inteiro, as teias, as redes, os saberes cruzados. Desde o início do atual governo, vozes dentro do próprio PT clamaram pela tal mudança esperada, acusando a continuidade do velho batidão.

Não é o PT, não é o Lula, não é o que está acontecendo nas picuinhas que interessa. Isso interessa aos juízes e interessa que os juízes sejam justos. O momento não é de reforma política no governo Lula, é um momento de transformação política mundial, que não passa necessariamente por manifestações românticas como as das décadas de 1960 e 1970. Só a mídia não vê, sempre insistindo no tom dramático, que a pressão está insuportavelmente maior. Tampouco é por coincidência que o poder midiático esteja tão ralo a ponto de encontrar ressonância apenas nas apelações mais baixas.

Não são só denúncias que interessam, são posições, são inúmeros grupos de pessoas que lutam por causas de uma forma organizada, em associações comunitárias, ONGs ou grupos atuantes. A sociedade hoje não pode e não quer perder tempo vendo o Lula sair, o vice-presidente, do PL, José Alencar, assumir; o barco correr como sempre correu.

O cancro social

É preciso continuar cortando na própria carne, quem sabe na dos meios de comunicação, antes que o primeiro golpe sob intervenção da mídia para derrubar um presidente fique inscrito na história do nosso tempo. Que otários se cairmos nessa. Os cidadãos do mundo que conhecem um pouco da história não estão querendo o impedimento do Lula por um motivo óbvio: sabem que no fundo dos fatos existe um padrão de funcionamento econômico, político e social muito antigo, que emergiu no governo Lula depois de anos de acordos, lavagens, concessões e outras regras que sempre regeram o universo político, especialmente o das políticas capitalistas atuais. É cansativo, um pouco lado Caras ver os senadores e deputados tentando saber detalhes sobre recibos, investigações de caixas dois, disse-me-disse.

É preciso provar para punir e o jogo das provas, exigido pela Justiça, é um jogo tão longo quanto o resto do teatro das CPIs que vai chafurdando no presente, sem ligá-lo à história. Parece que ficaremos o resto da vida tentando entender o que o narcotráfico tem a ver com a lavagem de dinheiro. As pessoas comuns comentam coisas como ‘xi, lá estão os caras mentindo de novo’.

Ligamos a TV e assistimos a mais uma matéria sobre o assassinato do jornalista Tim Lopes, num outro quadrinho o depoimento do tesoureiro Delúbio Soares, seguido da venda milionária de um jogador, pincelada por mais uma cena em Israel: saem os colonos, entram os palestinos no território de Gaza. O pano de fundo, que não se pode provar, é o mesmo e pertence à ciência histórica e ciência histórica não é ciência, embora ciência seja saber. Que pena.

Não interessa à imprensa, à mídia em geral e especialmente nas repercussões que faz sobre as CPIs, mudar o curso da história, melhor tentar provar que este ou aquele governo fez isto ou aquilo de errado, como se não nascesse e crescesse na política e na economia capitalista que rege os governos da maioria dos países, hoje, o cancro social, essa nossa realidade estupenda de desigualdades que pulsa no seio do sistema que tem como princípio arrecadar, desviar e concentrar rendas.

O masoquista da história

Discute-se sobre obter ou não o direito de abertura do sigilo bancário de homens públicos, mas a mídia não grita para a população que as contas das instituições e dos homens públicos pertencem à população, são públicas. Parece redundante, mas não é. O que se deve discutir, e que não é tão óbvio, mexe com certos direitos capitalistas muito rentáveis, é até onde o cidadão comum pode ir na liberdade econômica. E liberdade econômica sem limites é a outra face da corrupção, a tal face histórica em que a mídia não entra, a que não se pode provar, a bem da verdade a que nunca é contada do jeito que é.

O Brasil privatizado da era FHC foi um Brasil de capas de revista, dos grandes press-releases, publicados como matérias informativas. O cidadão comum é um grande palhaço e os meios de comunicação sabem a dose exata de informações que ele precisa para continuar apenas reclamando. Reclamação dá mais ibope do que atitude.

Enquanto isso o voto é obrigatório, o voto para eleger, o mesmo e velho votinho no candidato, no partido, o voto na centralização, na falta de diversidade, nas monoculturas ideológicas, agrícolas, econômicas, em todo esse esgoto que é ser grande. Pode-se sair ou não do PT, ir para o P-SOL ou para qualquer um dos outros novos partidos de ‘esquerda’. Também se pode ficar no PSDB, especular as chances, entrar para a turma a favor ou contra a candidatura do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Serão inexoravelmente mais 20, 30 anos de guerrilhas entre facções políticas, guerras de vaidades, rinhas pelo poder. O mundo político de hoje merece a mídia que tem, vive com ela um casamento perfeito.

O PT é o masoquista da história, sofreu, sofreu e não chegou ao prazer. Ri dele a mídia, essa mulher linda e corrupta, ao lado do respeitável marido, o mundo político capitalista. É enlouquecedor imaginar que vamos continuar indefinidamente como voyeurs de roubalheiras, fãs de celebridades, torcedores fanáticos, macacos de auditório. É um alento saber o que podemos fazer em outros meios de comunicação possíveis, levantando outras e todas as CPIs possíveis. É só o começo, ainda assim, a transformação política mundial vai ultrapassar a fase das CPIs, vai mergulhar no poço sem fundo e, como os que saem de anos de conversas sobre porquês, nos levará ao como fazer.

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Jornalista em Osório, RS