Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

E David Kelly continua morto

O primeiro nome foi ‘WMD’ (weapons of mass destruction) e depois que as tais armas de destruição em massa recusaram-se a aparecer no Iraque, o verbete passou a ser designado como ‘Caso Blair’, justa homenagem ao afobado premiê que garantiu a existência de um mortífero arsenal capaz de ser acionado em 45 minutos.

Quando ficou claro que as tais armas não existiam e a BBC começou a mostrar que o relatório secreto do qual serviu-se Tony Blair havia sido sexed up (esquentado) para impressionar a opinião pública, o caso virou ‘BBC vs. Blair’.

Logo em seguida, ficou evidente que também a BBC havia sexed up, esquentado, suas investigações sobre a má conduta do governo. Resultado: o nome passou a ser ‘Blair vs. BBC’.

Então apareceu o cadáver de um cientista especializado em armas químicas e biológicas, suposto informante da BBC e o affaire transformou-se em “Caso David Kelly”. Agora, com a divulgação das conclusões de lorde Hutton, o foco (e o nome) do episódio vão para o magistrado que produziu um conjunto de sentenças tão disparatadas que a própria vítima parece culpada e o móvel do inquérito, esquecido [leia outras matérias sobre o caso na rubrica Monitor da Imprensa, nesta edição].

Secretário inocentado

Da dramática sucessão de manipulações, simplificações, linchamentos e injustiças sai uma conclusão preliminar: continuam todos ensandecidos. A carga de emoção gerada pela discussão sobre as razões da guerra contagiou todos os seus desdobramentos. E o que deveria transformar-se numa avaliação serena e profunda sobre as razões que levaram um homem maduro a dar cabo de sua vida – a tremenda exposição pública a que foi submetido –, evaporarou-se.

Todos estão sexing up, esquentando, as respectivas versões, todos distorcem evidências e manipulam os fatos numa bacanal de meias-verdades que não honra a fleuma, a racionalidade e o senso de justiça da sociedade britânica.

David Kelly foi morto num fogo cruzado e deixado só no campo de batalha – esta é a verdade que as partes e os implicados recusam-se a enxergar. Matou-se não porque era um fraco mas porque os protagonistas eram fortes demais.

Chocado com esta morte e comprometido apenas com a discussão sobre a mídia, este Observador publicou cinco dias depois de encontrado o cadáver do cientista (Observatório nº 234, de 22/7/03) a matéria intitulada ‘David Kelly foi vítima dos holofotes’ [remissão abaixo]. Kelly foi executado ‘num patíbulo dominado pelos fantasmas dos reis-facínoras criados por Shakespeare’:

** A BBC dominada pela paranóia de provar a sua independência e valorizar-se perante o mercado internacional de TV all news.

** A mídia comercial, sobretudo o grupo Murdoch, proprietário da Fox News, doida para desmoralizar o mais bem-acabado e mais bem-sucedido paradigma de TV pública em todo o mundo.

** A feroz imprensa inglesa que nos momentos de grande tensão nivela-se aos tablóides.

** O governo Blair desesperado com o seu desprestígio pela adesão ao fundamentalismo de George Bush.

** A oposição conservadora inglesa doida para ver-se livre de Blair.

** A ala esquerda do Partido Trabalhista, idem.

Quem trouxe o David Kelly para o noticiário foi o secretário de Defesa do governo britânico, Geoff Hoon, que vazou o nome do cientista para a imprensa. Ao invés de uma investigação interna, sigilosa (como convém em matéria de segurança nacional), o governo inglês preferiu queimar a fonte da BBC e não teve escrúpulos em escancarar publicamente uma falha disciplinar.

Geoff Hoon, que expôs o nome de um funcionário antes mesmo de ser considerado culpado em qualquer inquérito, foi agora plenamente inocentado por lorde Hutton.

Vazamentos e esquentamentos

A BBC errou exatamente no mesmo momento. Quando a direção da emissora descobriu que o repórter Andrew Gilligan, no programa Today, havia sexed up, esquentado, as informações que o cientista Kelly lhe passara off the records, deveria pronta e publicamente assumir a falha. Deste modo, tiraria David Kelly do palco e assumiria a responsabilidade já que esta é de quem veicula a informação confidencial, e não da fonte.

Ao agarrar-se à sua infalibilidade, a BBC foi arrogante e nesta arrogância deixou Kelly sozinho no banco dos suspeitos. Um pouco mais de humildade, compromisso com a transparência, espírito público, solidariedade humana e um pouco menos de altivez poderiam proteger Kelly dos holofotes e poupar a sua vida.

A BBC foi severamente julgada por lorde Hutton mas não o governo. A complacência com o Estado em detrimento de uma instituição pública compromete o equilíbrio da avaliação e põe sob suspeita não apenas o avaliador mas também o poder que representa (a Câmara Alta).

Quando o New York Times escancarou suas entranhas e puniu exemplarmente o repórter-embusteiro Jayson Blair, correu todos os riscos. A BBC poderia ter feito o mesmo se fosse menos imperial, mais ágil e mais justa ao reconhecer que Gilligan exagerou as informações que recebera de Kelly. Preferiu ir em frente na disputa com o governo e o governo foi em frente na tentativa de desmoralizar uma das mais importantes instituições inglesas.

Estavam todos em guerra e nestas circunstâncias ninguém lembra das eventuais vítimas. Ironicamente, único a lembrar-se de David Kelly foi lorde Hutton: sem a possibilidade de defender-se, enterrado, o cientista foi exumado pela condenação de falar com o repórter da BBC sem autorização dos superiores.

Quem garante que um dos chefes de Kelly não lhe deu o sinal verde? Será que os escalões superiores não pressentiam a eminente desmoralização dos serviços de inteligência ingleses e deixaram que vazassem algumas dúvidas preventivas?

Onisciente e certamente com poderes para comunicar-se com o Além, lorde Hutton declarou-o culpado. Sem direito a apelação.

Esta onipotência traz até nós o protesto de um importante jornalista português e também advogado especializado em questões ligadas à liberdade de informação. Escreveu na revista Visão (15/1/04, pág. 40) o seu diretor, José Carlos de Vasconcelos:

‘Nunca vi um magistrado ser responsabilizado por erros mesmo grosseiros; vi, sim, muitos bons jornalistas injustamente no banco dos réus’.

O Relatório Hutton não esclareceu coisa alguma: o governo, aparentemente vitorioso, ficou ainda mais vulnerável e a BBC, aparentemente derrotada, como todas as vítimas da injustiça parece prestigiada por seu público.

Apesar das condenações, os holofotes foram inocentados. E, com eles, os procedimentos jornalísticos que provocaram a tragédia: vazamentos e esquentamentos. O resto é política.