Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

José Queirós

“1. A iden­ti­fi­ca­ção dos pro­ta­go­nis­tas de pro­ces­sos judi­ci­ais — as víti­mas de cri­mes, mas tam­bém os que são acu­sa­dos de os come­ter — é um dos pro­ble­mas mais dis­cu­ti­dos no campo da deon­to­lo­gia jor­na­lís­tica. É um tema em que exis­tem zonas de con­senso, mas tam­bém ques­tões de alguma com­ple­xi­dade, que devem con­ti­nuar a ser deba­ti­das, sem pre­juízo do esforço de fixa­ção de regras orientadoras.

Uma notí­cia recente, divul­gada de forma dife­rente nas duas pla­ta­for­mas do PÚBLICO (o jor­nal impresso e a edi­ção para a Inter­net), pro­vo­cou objec­ções e dúvi­das de lei­to­res, rela­ci­o­na­das com a iden­ti­fi­ca­ção, tanto da vítima como do agres­sor, num caso de crime de natu­reza sexual. Esse caso, que mui­tos recor­da­rão pela reper­cus­são pública que teve e pela polé­mica que gerou ao longo das várias eta­pas do pro­cesso judi­cial a que deu ori­gem, levou a tri­bu­nal um médico psi­qui­a­tra acu­sado de ter for­çado uma doente a ter rela­ções sexu­ais con­tra a sua von­tade. Ini­ci­al­mente con­de­nado na pri­meira ins­tân­cia a uma pena de pri­são (sus­pensa) e ao paga­mento de 30 mil euros de indem­ni­za­ção, o psi­qui­a­tra viria a ser absol­vido pela Rela­ção do Porto, numa sen­tença muito cri­ti­cada por con­tra­riar noções comuns sobre vio­lên­cia sexual e rela­ções sem consentimento.

O pro­cesso che­gou depois ao Supremo Tri­bu­nal de Jus­tiça (STJ), que não acei­tou revê-lo no plano da res­pon­sa­bi­li­dade penal, expli­cando, segundo foi noti­ci­ado, que ‘não há recurso das deci­sões abso­lu­tó­rias pro­fe­ri­das em recurso pelas rela­ções’. A sua deci­são quanto ao recurso no plano cível, con­de­nando o médico a pagar 100 mil euros à vítima, não dei­xou dúvi­das, no entanto, quanto à con­vic­ção dos juí­zes sobre a cul­pa­bi­li­dade deste. Foi dada como pro­vada a exis­tên­cia de coer­ção, no caso exer­cida sobre uma mulher fra­gi­li­zada, em situ­a­ção depres­siva e até fisi­ca­mente limi­tada por se encon­trar, à época, em estado final de gravidez.

Foi esta deci­são do STJ que o PÚBLICO divul­gou, pri­meiro no pas­sado dia 16, na edi­ção on line, atra­vés de uma notí­cia dis­tri­buída pela agên­cia Lusa, e com maior deta­lhe no dia seguinte, no jor­nal impresso, em texto assi­nado pela jor­na­lista Ana Cris­tina Pereira. Na pri­meira notí­cia, tanto a vítima como o médico agora con­de­nado eram iden­ti­fi­ca­dos pelos seus nomes com­ple­tos. Na segunda, foi omi­tido o nome da vítima, e o psi­qui­a­tra sur­gia iden­ti­fi­cado ape­nas pelo pri­meiro nome e pelas ini­ci­ais do último ape­lido. Foram estas opções, e a patente diver­gên­cia de cri­té­rios entre a edi­ção on line e o jor­nal em papel, que pro­vo­ca­ram o pro­testo ou a per­ple­xi­dade de alguns leitores.

Quanto à iden­ti­fi­ca­ção da vítima, não há lugar a dúvi­das: tratou-se de um erro, e de um erro grave. A norma deon­to­ló­gica que impõe aos jor­na­lis­tas que não iden­ti­fi­quem, directa ou indi­rec­ta­mente, as víti­mas de cri­mes sexu­ais, é de fácil com­pre­en­são. Visa impe­dir que ao abuso come­tido sobre a vítima se some outro abuso, com a des­ne­ces­sá­ria, e mui­tas vezes estig­ma­ti­zante, expo­si­ção pública do seu nome. É uma regra con­sen­sual, de que só se afasta algum jor­na­lismo sem escrúpulos.

O nome com­pleto da vítima cons­tava de uma notí­cia da Lusa, que o PÚBLICO colo­cou em linha às 17h43 do dia 16. Con­tra essa pas­sa­gem do texto pro­tes­tou de ime­di­ato o lei­tor Raul Silva, atra­vés da caixa de comen­tá­rios da edi­ção na Inter­net, e o erro viria a ser cor­ri­gido ainda nesse dia. Luci­ano Alva­rez, edi­tor doPÚBLICO Online, diz ter sido ‘aler­tado para o erro, por cole­gas, minu­tos depois da publi­ca­ção’ e acres­centa que este ‘foi ime­di­a­ta­mente cor­ri­gido’, tendo sido ‘reti­rado o nome da vítima’.

Mais uma vez, a pressa em divul­gar, sem a refle­xão neces­sá­ria, uma notí­cia de agên­cia — e, pro­va­vel­mente, a falta de coor­de­na­ção com quem se encon­trava a tra­tar o tema para o jor­nal do dia seguinte — tinha pro­vo­cado estra­gos. É certo que o nome foi reti­rado, mas o mal estava feito. Nin­guém pode garan­tir que, uma vez colo­cada na Inter­net, uma infor­ma­ção não seja reproduzida.

Se é ver­dade que neste caso os res­pon­sá­veis pelo Público Online rea­gi­ram rapi­da­mente, fizeram-no come­tendo outro erro: não assi­na­la­ram a alte­ra­ção efec­tu­ada, o que só foi feito há pou­cos dias. Ora não só a sina­li­za­ção de alte­ra­ções e cor­rec­ções às notí­cias on line deve ser obri­ga­tó­ria — é uma ques­tão de hones­ti­dade pro­fis­si­o­nal e de res­peito pelos lei­to­res que toma­ram conhe­ci­mento do texto ori­gi­nal —, como o des­leixo no cum­pri­mento desta regra pode pro­vo­car equí­vo­cos lamen­tá­veis. Foi o que suce­deu com o lei­tor Raul Silva, que, tendo jus­ta­mente cri­ti­cado a publi­ca­ção da iden­ti­dade da vítima, se viu acu­sado por outros comen­ta­do­res de estar a defen­der a omis­são do nome do agres­sor. Tratava-se, como se per­ce­berá, de lei­to­res que viram o seu comen­tá­rio quando a notí­cia já fora cor­ri­gida e o único nome dela cons­tante pas­sara a ser o do psi­qui­a­tra, sem que no entanto essa cor­rec­ção esti­vesse assi­na­lada e explicada.

2. Pro­blema dife­rente levantou-se com a notí­cia, rigo­rosa e escla­re­ce­dora, assi­nada por Ana Cris­tina Pereira na edi­ção em papel do dia 17. Nesse texto, o psi­qui­a­tra jul­gado pelo STJ foi iden­ti­fi­cado de forma enco­berta (pri­meiro nome e ini­ci­ais dos ape­li­dos), em con­traste com o que suce­dera no Público Online. Tal solu­ção sus­ci­tou, natu­ral­mente, várias dúvi­das: sobre a dife­rença de cri­té­rio entre as duas edi­ções, sobre a uti­li­dade de uma fór­mula que parece que­rer fugir à esco­lha entre publi­car ou omi­tir a iden­ti­fi­ca­ção e, final­mente, sobre a ques­tão de fundo, a de saber se deve ou não ser dado a conhe­cer o nome de alguém que foi con­de­nado em tribunal.

Tiago Luz Pedro, edi­tor da sec­ção Por­tu­gal, explica que a solu­ção adop­tada resul­tou do com­pro­misso a que che­gou com a autora da peça. Esta optara ini­ci­al­mente por não iden­ti­fi­car o psi­qui­a­tra, argu­men­tando com o facto de que o jor­nal o não fizera em ante­ri­o­res notí­cias sobre o caso e ‘com a sua pró­pria con­vic­ção pro­fis­si­o­nal, que só em casos muito excep­ci­o­nais admite a iden­ti­fi­ca­ção de visa­dos em pro­ces­sos judi­ci­ais’. Uma con­vic­ção que a jor­na­lista, que tem publi­cado diver­sos tra­ba­lhos resul­tan­tes do diá­logo com pes­soas que cum­pri­ram ou estão a cum­prir penas por cri­mes come­ti­dos, assume nes­tes ter­mos: ‘No mundo ideal, a pes­soa é con­de­nada a uma pena, cumpre-a, e aca­bou. No mundo real, ter come­tido um crime e ter sido preso por isso é um motor de estigma. Fazer jor­na­lismo de res­pon­sa­bi­li­dade é, tam­bém, per­ce­ber isto’.

Para o edi­tor, pelo con­trá­rio, a iden­ti­fi­ca­ção do psi­qui­a­tra não ofe­re­cia dúvi­das: ‘Não só era um médico que exer­cia fun­ções públi­cas (de que foi sus­penso antes mesmo da con­de­na­ção judi­cial) como o caso teve um eco pro­fundo na soci­e­dade, em par­ti­cu­lar depois do polé­mico acór­dão da Rela­ção que o absol­veu da con­de­na­ção na pri­meira ins­tân­cia e das dife­ren­tes noções de vio­lên­cia sexual que aí se esgri­miam’. A solu­ção apa­ren­te­mente salo­mó­nica a que se che­gou — e que Tiago Luz Pedro diz ter admi­tido ‘ape­nas como a excep­ção que con­firma a regra, por res­peito à ‘cul­tura’ de uma jor­na­lista exem­plar no tra­ta­mento dos temas que lhe com­pe­tem’ — resul­tou, na prá­tica, na omis­são do nome do médico.

Por mim, julgo que o recurso a ini­ci­ais, à omis­são de ape­li­dos ou a nomes fic­tí­cios não faz sen­tido nas notí­cias sobre pro­ces­sos judi­ci­ais, devendo ser reser­vado (com a devida expli­ca­ção aos lei­to­res) para os tra­ba­lhos jor­na­lís­ti­cos, geral­mente repor­ta­gens, em que con­tri­bui para per­so­na­li­zar pro­ta­go­nis­tas que não podem ou não devem ser iden­ti­fi­ca­dos. O com­pro­misso a que neste caso se che­gou na redac­ção doPÚBLICO deve dese­ja­vel­mente dar lugar ao apro­fun­da­mento do debate sobre a iden­ti­fi­ca­ção ou não das pes­soas con­de­na­das pela justiça.

A legi­ti­mi­dade dessa iden­ti­fi­ca­ção é indis­cu­tí­vel. A rea­li­za­ção da jus­tiça é um acto público. A sen­tença con­de­na­tó­ria de um tri­bu­nal tem fun­ções de repro­va­ção social, de pre­ven­ção do crime e até de escla­re­ci­mento fac­tual que inte­gram o direito dos cida­dãos à infor­ma­ção. Para além desse inte­resse público gené­rico, pode exis­tir em várias situ­a­ções um inte­resse público espe­cí­fico, geral­mente rela­ci­o­nado com a segu­rança. Exis­tirá no caso ver­tente se con­cor­dar­mos com o que escre­veu uma lei­tora nos comen­tá­rios à notí­cia: ‘Parece-me que será avi­sado que conhe­ça­mos o nome deste médico para não irmos ao engano ao seu consultório’.

Esse inte­resse público deve, no entanto, ser cui­da­do­sa­mente pon­de­rado em cada situ­a­ção con­creta, para não ser con­fun­dido com curi­o­si­dade mór­bida ou voyeu­rismo. É um facto que a publi­ci­ta­ção, atra­vés da comu­ni­ca­ção social, da iden­ti­dade de alguém que foi con­de­nado, espe­ci­al­mente por certo tipo de cri­mes, irá estig­ma­ti­zar essa pes­soa para além do tempo de cum­pri­mento da pena, podendo até ame­a­çar a sua segu­rança. A com­pli­car uma ava­li­a­ção neste caso, deve ter-se em conta que pode não ser óbvio o enten­di­mento de que ces­sou o direito à pre­sun­ção de ino­cên­cia do médico san­ci­o­nado: afi­nal, gos­te­mos ou não, de acordo com as leis em vigor, ele foi absol­vido das acu­sa­ções criminais.

Con­cluo por isso com uma nota de dúvida e um apelo ao apro­fun­da­mento do debate. A imprensa tem toda a legi­ti­mi­dade para iden­ti­fi­car quem foi con­de­nado pela jus­tiça, e por mai­o­ria de razão quando a sua noto­ri­e­dade ou res­pon­sa­bi­li­dade social, e ainda a natu­reza do crime ou o alarme cau­sado, assim o acon­se­lham. Saber se deve fazê-lo implica, no entanto, em cada caso con­creto, uma pon­de­ra­ção de cir­cuns­tân­cias e valo­res em que sem­pre influi­rão dife­ren­ças de sen­si­bi­li­dade no plano ético. Mais do que na apli­ca­ção de regras, que são neces­sá­rias, é nesse exer­cí­cio que se afirma a res­pon­sa­bi­li­dade editorial.”