Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Na toca da raposa

Concebida por Roger Ailes, ex-assessor de Nixon e Reagan, a Fox News lidera a audiência entre as redes jornalísticas a cabo nos EUA, com público masculino, branco, interiorano e de baixa escolaridade. Espelho da figura paranoica de seu criador, a Fox News pauta não só o debate político, mas o próprio Partido Republicano.

Na festa de fim de ano da Fox News, no ano em que a rede ultrapassou sua arquirrival CNN em audiência na TV a cabo nos EUA, funcionários se reuniram em torno de um aparelho de TV no subsolo de um bar em Nova York e uma imagem se acendeu na tela: o logotipo da MSNBC. Os fiéis seguidores da Fox desfiaram um coro de vaias. Seguiu-se o logotipo da CNN; as vaias se multiplicaram. Então veio um terceiro slide. Em vez do logo da Fox News, surgiu o rosto do fundador da rede, conhecido entre seus seguidores mais leais e aguerridos apenas como “o presidente”: Roger Ailes.

“Era como se estivéssemos olhando para Mao”, lembra Charlie Reina, ex-produtor da Fox News. Os “foxistas” foram à loucura. Até os que não gostavam do estilo de Ailes dirigir a rede se juntaram à manifestação de lealdade. “É feito a União Soviética ou a China”, diz um ex-executivo da empresa-mãe da rede, a News Corp. “Uns deduram os outros.”

Reflexo

Em 2012, a Fox News completa dez anos na liderança absoluta entre as redes jornalísticas na TV a cabo americana. Dois dos quatro pré-candidatos republicanos à Presidência dos Estados Unidos – Newt Gingrich e Rick Santorum – são ex-comentaristas da rede, que pertence à News Corp., conglomerado de mídia do australiano Rupert Murdoch.

Para entender a rede que simboliza o ultraconservadorismo nos EUA e qual seu verdadeiro objetivo, é preciso entender Roger Ailes. “Ele é a Fox News”, diz Jane Hall, comentarista da Fox durante uma década. “A Fox News é a visão dele. É um reflexo dele.” Ailes comanda a cabeça mais lucrativa da hidra da News Corp. Em 2010 a Fox News teve lucro estimado em US$ 816 milhões – quase um quinto do lucro global de Murdoch. A receita da rede rivaliza com a da divisão de filmes da News Corp., que inclui a 20th Century Fox.

Com sua enxuta central de jornalismo – a Fox News tem um terço da equipe e 30 sucursais a menos que a CNN –, Ailes gera margens de lucros mais de 50% superiores às da concorrente. Quase metade vem da publicidade; o resto vem de direitos pagos por operadoras de TV a cabo. Hoje a Fox News chega a 100 milhões de lares nos EUA. O objetivo de Ailes é que a rede “faça US$ 1 bilhão em lucros”. O sucesso garante a Ailes liberdade para moldar a rede à sua própria imagem. “Murdoch quase não tem envolvimento com a emissora”, conta Michael Wolff, que passou nove meses na News Corp., pesquisando uma biografia do gigante australiano da mídia. “As pessoas têm medo de Roger. O próprio Murdoch tem medo dele. Roger acumulou um poder imenso na empresa – e no país – graças ao sucesso da Fox News.”

Na realidade, é exatamente medo o que Ailes vende: sua implacável rede exagera a importância de ameaças-fantasma como a “mesquita do terror”, planejada para ser construída perto do marco zero, inspirando o pastor Terry Jones, na Flórida, a queimar um exemplar do Corão. Reservadamente, Murdoch se mostra impressionado pelo tino comercial de Ailes, mas rejeita sua visão política extremista. “Você sabe que o Roger é maluco”, disse a um colega, fazendo um gesto de descrença com a cabeça. “Ele realmente acredita em tudo aquilo.”

Desprezo

Ailes nasceu em 1940 em Warren, Ohio, subúrbio operário de Youngstown. Seu pai trabalhava na fábrica da Packard, produzindo a parte elétrica de carros da GM, e Roger cresceu cheio de ressentimento pelo desprezo com que o pai era tratado pelos “rapazes de faculdade” que comandavam a linha de produção. Doente na infância – a hemofilia o obrigava a ficar sentado no recreio na escola –, Ailes teve de reaprender a andar após ser atropelado aos oito anos. Foi criado pela avó e pela TV, pois a mãe trabalhava fora. “A TV e eu crescemos juntos”, escreveria mais tarde.

Bebedor inveterado na adolescência (“Eu vivia de porre”), Ailes diz que estudou na escola pública “porque me disseram que lá eu poderia beber”. Mas havia outra razão: seu pai o expulsou de casa quando ele concluiu o ensino médio. Durante sua passagem pela Universidade de Ohio, onde estudou rádio e TV, seus pais se divorciaram e deixaram a casa onde ele tinha passado boa parte da infância recuperando-se de doenças e machucados. “Quando voltei, a casa tinha sido vendida e todas as minhas coisas tinham sumido”, recordou. “Nunca encontrei minhas coisas!” O choque parece tê-lo imbuído de uma nostalgia quase patológica por todos os aspectos físicos da vida no interior dos Estados Unidos.

Na faculdade, Ailes tentou entrar no ROTC da Força Aérea (o programa de treinamento de oficiais da reserva), mas foi rejeitado em razão de seus problemas de saúde. Voltou-se então para o teatro, atuando em uma série de produções universitárias. O interesse por teatro e afins não desapareceu: ao concluir a faculdade, seu primeiro emprego foi como faz-tudo no The Mike Douglas Show, programa de variedades que, num mundo que enlouquecia com Elvis e os Beatles, dava destaque a astros envelhecidos como Jack Benny e Pearl Bailey.

Sob muitos aspectos, Roger nunca deixou de ser fruto dessa era anterior. Seus modos dos anos 1950, seus revides sarcásticos e seu machismo desavergonhado dão a impressão, diz uma pessoa íntima dele, “de que você está falando com alguém que passou algumas décadas isolado do mundo”.

Discurso raivoso

Assistir a um só dia que seja da Fox News – o discurso raivoso, o tom paranoico, os apelos ao ressentimento dos brancos, o trabalho de reportagem que se confunde com propaganda eleitoral – é enxergar o reflexo de seu fundador, um dos mais habilidosos e temíveis agentes na história do Partido Republicano. Como consultor político, Roger Ailes reembalou Richard Nixon para a TV, em 1968; disfarçou o fato de Ronald Reagan estar começando a sofrer do mal de Alzheimer, em 1984; reforçou temores raciais para eleger George Bush pai em 1988; e travou uma campanha secreta em prol da indústria de cigarros, em 1993, para tirar dos trilhos uma reforma do sistema de saúde. “Ele era o número um no nosso negócio”, diz Ed Rollins, ex-chefe de campanha de Reagan. “Era o nosso Michelangelo.”

De acordo com a fábula que Ailes conta, ele rompeu com seu passado político sujo muito antes de 1996, quando se uniu a Rupert Murdoch para lançar a Fox News. “Abandonei a política porque a odiava”, declarou certa vez. Ailes vem utilizando a Fox News para travar uma nova forma de campanha política, que permite ao Partido Republicano passar ao largo de jornalistas céticos e lançar ataques 24 horas por dia. A Fox News é um gigantesco palco criado para imitar o visual e o ambiente jornalístico, no qual a propaganda política é camuflada sob a aparência de jornalismo independente. O resultado é uma poderosa máquina política, que exerce um papel de liderança na definição da pauta republicana e na promoção da agenda da extrema-direita. A Fox News desequilibrou a balança eleitoral em favor de George W. Bush em 2000, declarando-o presidente prematuramente, iniciativa que levou todas as outras emissoras a seguirem seu exemplo.

Ajudou a criar o Tea Party, levando um movimento que era motivo de chacota na TV à insurgência nacional capaz de eleger senadores. Ao incubar uma multidão de potenciais candidatos republicanos na folha salarial da Fox News – incluindo Sarah Palin, Mike Huckabee, Newt Gingrich e Rick Santorum –, Ailes parece determinado a acrescentar um quinto crédito presidencial a seu currículo neste ano.

Ailes tem a aparência clássica de um vilão do cinema: careca e obeso, mãos delicadas, bochechas gordas como as de Hitchcock e andar desajeitado. Seus amigos o descrevem como alguém leal, generoso e engraçadíssimo. Mas Ailes também é um tirano ocasional, tendo dito certa vez: “Para mim, é amizade ou terra arrasada.” “O que diverte o Roger é a destruição”, falou Dan Cooper, peça-chave da equipe que fundou a Fox News. Além disso, Ailes é profundamente paranoico. Convencido de que está na mira da Al Qaida para ser assassinado, ele se cerca de uma equipe de segurança agressiva e anda armado.

Vocação

Ailes encontrou sua vocação na TV. Mostrou ser um gênio natural do veículo, tendo feito uma ascensão meteórica de faz-tudo a produtor-executivo aos 25 anos. Tinha um dom surpreendente para ganhar vida na TV ao vivo. Mas foi nos bastidores do Mike Douglas Show, em 1967, que conheceria o homem que o faria iniciar sua jornada como maior operador político de sua geração: Richard Milhous Nixon.

O ex-vice-presidente (1953-61) – cuja performance desajeitada, empapado em suor, num debate televisivo com John F. Kennedy, ajudara fracassar sua tentativa de conquistar a presidência em 1960 – fazia uma turnê de mídia para reabilitar sua imagem. Enquanto aguardavam o início do programa em seu escritório, Ailes provocou seu poderoso convidado. “A câmera não gosta de você”, falou. Nixon não gostou. “É lamentável que um homem precise recorrer a artifícios como a TV para se eleger”, reclamou. “A TV não é um artifício”, disse Ailes. “E se você acha que é, vai perder de novo.” Nixon se convenceu de que tinha encontrado um jovem gênio que seria capaz de vender sua imagem ao público. Para Roger Ailes, foi a primeira vez em que um candidato o conquistou de verdade.

Ele logo abandonou o emprego de produtor do maior sucesso da Westinghouse para ser contratado como “produtor executivo de TV” de Richard Nixon.

Murdoch

Assim como Nixon, Rupert Murdoch achou Ailes cativante, poderoso, cheio de bons contatos políticos e divertidíssimo. Ambos tinham sido casados duas vezes. Compartilhavam um desprezo declarado pelas regras tradicionais do jornalismo. Murdoch tinha interesse próprio em atacar progressistas com intenções regulatórias, cujas políticas ameaçavam seus planos de expansão.

Antes de assinar contrato para comandar a nova rede, exigiu que Murdoch conseguisse sua distribuição a cabo em todo o país. Normalmente, operadoras de cabo como a Time Warner pagam provedoras de conteúdo, como a CNN ou a MTV, pelos direitos de transmissão. Murdoch virou esse modelo de ponta-cabeça. Ele não só entregou a Fox News de graça como pagava às operadoras até US$ 20 por assinante para levar a Fox News a 25 milhões de residências. “A oferta de Murdoch chocou o setor”, escreve seu biógrafo Neil Chenoweth. “Ele estava disposto a entregar meio bilhão de dólares só para comprar uma voz nos noticiários.”

Antes de ir ao ar, a Fox News já tinha garantido um público de massa, comprado e pago. Ailes elogiou a “ousadia” de Murdoch, acrescentando: “Isto é capitalismo e é uma das coisas que fez este país ser tão grande.”

Ética

Ailes também estava determinado a não deixar que a ética jornalística atrapalhasse sua agenda política. Para garantir uma equipe de jornalistas maleáveis, comandou o que descreveu como uma “fuga da prisão” da NBC, trazendo dezenas de profissionais com ele para a Fox News. Em seguida, começou um expurgo na Fox News. “Havia um teste que era aplicado”, recorda Joe Peyronnin, cujo lugar Ailes tomou na direção da rede. “Ele tentaria decifrar quais eram os progressistas e quais eram os conservadores, livrando-se dos progressistas.” Quando desconfiava de que um jornalista não era suficientemente de direita, lançava uma acusação: “Por que você é progressista?” Se já tivessem trabalhado em uma grande rede de jornalismo, Ailes obrigava os jornalistas a se defenderem por terem trabalhado, por exemplo, na CBS, que apelidava de “Communist Broadcast System”.

Ailes converteu sua Redação em um bunker. Os jornalistas e produtores da Fox News trabalham num local enorme e sem janelas situado abaixo do nível da rua. No mesmo subterrâneo, Ailes criou uma unidade de pesquisas – conhecida na Fox News como a brain room, ou sala dos cérebros. Segundo Cooper, que ajudou a projetar as especificações da sala, a brain room “é onde mora o mal”.

Bush

Mas foi a eleição de George W. Bush em 2000 que revelou o verdadeiro poder da Fox News como máquina política. Segundo um estudo da Universidade da Califórnia, a Fox News transferiu cerca de 200 mil votos para Bush em áreas onde os eleitores tinham acesso à rede. Mas Ailes, o eterno operador político, não deixaria o resultado a cargo de algo tão imprevisível quanto o voto popular. O homem que chamou para chefiar a “editoria da decisão” na noite da eleição – ou seja, o consultor responsável por declarar a vitória de Gore ou Bush em cada estado – era ninguém menos que John Prescott Ellis, primo-irmão de Bush.

Tal conflito de interesses desqualificaria Ellis em qualquer Redação digna do nome. Mas, para Ailes, a lealdade a Bush representava um ponto a favor. “Nós, na Fox News”, ele diria mais tarde em audiência na Câmara, “não discriminamos pessoas em razão de seus vínculos familiares.” No dia da eleição, Ellis ficou em contato constante com o próprio Bush. Depois da meia-noite, quando cifras tardias indicavam que Bush tinha uma vantagem estreita, Ellis se adiantou, declarando-o vencedor – embora, na Flórida, o consórcio de contagem de votos utilizado por todas as redes de TV ainda considerasse que a diferença era pequena demais para que se pudesse declarar o vencedor.

Hume anunciou a vitória de Bush na Fox às 2h16, iniciativa que levou todas as outras emissoras a seguirem seu exemplo, provocando manchetes sobre “vitória de Bush” nos jornais matinais. “Nunca saberemos se Bush venceu ou não a eleição na Flórida”, diz Dan Rather, âncora da cobertura eleitoral da CBS naquela noite. “Mas, em situações desse tipo, a capacidade de controlar a narrativa passa a ser crucial. Liderada pela Fox, a narrativa passou a ser que Bush tinha vencido a eleição.”

Medos

Ailes sabe exatamente quem está assistindo à Fox News e é hábil em intensificar os piores medos do público na era de Barack Obama. O público da emissora é idoso, com idade média de 65 anos; logo, os anúncios são voltados a pessoas com imobilidade, doentes e incontinentes. O público também é quase exclusivamente branco – só 1,38% dos espectadores da Fox News são afro-americanos. “Roger entende o público”, disse Rollins, ex-consultor de Reagan. “Sabe como direcionar as notícias para o público-alvo, que é o que a Fox News faz.”

O espectador típico do programa de Hannity, para pegar um exemplo extremo, é pró-empresas (86%), conservador cristão (78%), partidário do Tea Party (75%), sem diploma universitário (66%), tem mais de 50 anos (65%), é a favor da NRA, o lobby americano das armas (73%), não apoia os direitos dos gays (78%) e acha que o governo “interfere demais” (84%).

De acordo com pesquisas recentes, os espectadores da Fox News são os mais desinformados entre todos os consumidores de notícias. Eles têm 12% mais chances de acreditar que o pacote de estímulo à economia provocou perdas de empregos, 17% mais probabilidade de acreditar que os muçulmanos querem estabelecer a sharia (lei muçulmana) nos EUA, 30% mais chances de dizer que cientistas contestam o aquecimento global e 31% mais chances de colocar em dúvida a cidadania americana do presidente Obama.

Segundo um estudo da Universidade de Maryland, a ignorância dos espectadores da Fox aumenta proporcionalmente ao tempo que eles passam assistindo à rede. Isso acontece porque Roger Ailes não está interessado em fornecer informações às pessoas, nem mesmo uma gama equilibrada de pontos de vista. Como seu mentor político, Richard Nixon, Ailes vende as emoções da vitimização. “Ele pega o sentimento de vergonha de pessoas que se sentem desprezadas e o mobiliza com finalidade política”, diz Perlstein, autor de Nixonland. “Roger Ailes é um vínculo direto entre a política nixoniana do ressentimento e a política do ressentimento de Sarah Palin. Ele é o fio conector.”

Resta saber se Ailes conseguirá seus dois objetivos: atingir a meta de US$ 1 bilhão em lucros anuais e destronar Obama com um de seus candidatos-empregados. De todo modo, ele pôs o Partido Republicano em sua folha de pagamento e o obrigou a recriar-se em torno da imagem de Roger Ailes. Ailes é o presidente, e hoje o movimento conservador se reporta a ele. “Originalmente, nós, republicanos, pensávamos que a Fox trabalhava para nós”, disse David Frum, ex-redator de discursos de Bush. “Agora estamos descobrindo que nós é que trabalhamos para a Fox.”

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[Tim Dickinson é repórter político da revista americana Rolling Stone]