Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Ao nível da soleira

O compromisso dos jornais brasileiros com a qualidade editorial está estabilizado em patamares de soleira. É o que se pode constatar quando se compara os dados de 2012 publicados pelo Programa Permanente de Autorregulamentação da Associação de Jornais (ANJ) com dados de uma pesquisa publicada em 2008 por pesquisadores brasileiros de três universidades paulistas.

Os dados divulgados pelo Programa Permanente de Autorregulamentação da ANJ evidenciam o muito que o setor precisa melhorar. Em uma simulação de ranking, mostrei que 83% dos jornais obteriam conceitos D ou E, considerando os próprios dados da ANJ como referência, conforme se pode verificar na tabela a seguir (ver, neste Observatório, “Por que não um ranking dos jornais?”):

 

Ranking simulado de jornais: um exercício de medição de desempenho dos jornais
brasileiros a partir de dados do Programa Permanente de Autorregulamentação da ANJ

Conceito Padrão* de referência dos jornais associados à ANJ Número de Jornais por conceito* Percentual
A Atenderiam a todos os requisitos 5 3%
B Atenderiam a 6 ou 7 requisitos 11 7 %
C Atenderiam a 4 ou 5 requisitos 11 7 %
D Atenderiam a 2 ou 3 requisitos 69 45 %
E Atenderiam a 1 dos requisitos 58 38 %
 Total 154 (total de jornais)  

*O grau de desempenho aqui informado não é real. É uma simulação com base em dados da ANJ. Entretanto, a simulação favorece aos jornais, pois, numa possível avaliação real, se os dados da ANJ fossem disponibilizados individualmente, por veículo, provavelmente nenhum dos jornais atenderia aos requisitos do conceito A. Para ver como se chegou a esses conceitos, ver aqui.

 

O problema é que o quadro de 2012 não é muito diferente do encontrado em 2008, quando uma equipe de pesquisadores brasileiros elaborou um ranking próprio sobre a credibilidade dos jornais, a partir dos mesmos indicadores empregados em investigação realizada pelo International Center for Media and the Public Agenda (ICMPA), da Universidade de Maryland, intitulada “Openness & Accountability: A Study of Transparency in Global Media Outlets”.

Os indicadores elaborados pela pesquisa norte-americana e empregados pela equipe brasileira foram os seguintes (ver aqui):

>> correção: disposição para publicamente corrigir os erros;

>> propriedade: divulgação sobre a propriedade das organizações;

>> política de pessoal: orientação/divulgação situações relativas a conflitos de interesse;

>> política editorial: divulgação de princípios e orientações editoriais;

>> interatividade: abertura para comentários e críticas dos consumidores.

O estudo brasileiro, “Gestão da qualidade da informação no contexto das organizações: percepções a partir do experimento de análise da confiabilidade dos jornais eletrônicos”, foi publicado na revista científica Perspectivas em Ciência da Informação em 2008 pelos pesquisadores José Osvaldo de Sordi, Manuel Meireles e Rogério Nahas Grijo (ver aqui).

O resultado do ranking do estudo brasileiro pode ser conferido na reprodução a seguir:

 

Reprodução do ranking de qualidade da informação em jornais brasileiros, elaborado pelo estudo “Gestão da qualidade da
informação no contexto das organizações: percepções a partir do experimento de análise da confiabilidade dos jornais eletrônicos” – 2008

  

Fonte: “Gestão da qualidade da informação no contexto das organizações: percepções a partir do experimento de análise da confiabilidade dos jornais eletrônicos”, disponível aqui.

 

Guardiões da lanterninha

O que se observa dos resultados é que, de quatro pontos possíveis de serem obtidos, nove dos dez jornais pesquisados não alcançaram nem 50% deles. Se convertêssemos essa pontuação em conceitos A, B, C, D ou E, atribuindo o conceito A para quem obtivesse 90% dos pontos possíveis, B para quem obtivesse de 70% a 89%; C para quem obtivesse de 50 a 69%; D para quem obtivesse de 30% a 49% e E para quem obtivesse menos do que 30%, teríamos o seguinte padrão de pontuação e desempenho:

 

Desempenho conceitual dos jornais brasileiros, montado a partir de dados disponibilizados pelo estudo “Gestão da qualidade da informação no contexto das organizações: percepções a partir do experimento de análise da confiabilidade dos jornais eletrônicos” – referência 2008

Conceito Padrão de referência No. Jornais Jornais
A 90 a 100% dos 4 pontos possíveis = 3,6 – 4,0 Nenhum
B 70 a 89% dos 4 pontos possíveis = 2,8 a 3,5 Nenhum
C 50 a 69% dos 4 pontos possíveis = 2,0 a 2,7 1 Folha de S. Paulo
D 30 a 39% dos 4 pontos possíveis = 1,2 a 1,9 2 O Globo e O Estado de S.Paulo
E Menos de 30% dos 4 pontos possíveis = 0,0 a 1,1 7 Extra, Zero Hora, Diário Gaúcho, Correio do Povo, Super Notícia e O Dia

 

Há que se enfatizar que os autores selecionaram os dez maiores jornais brasileiros em termos de circulação média diária em 2007, segundo dados da ANJ, tratando-se portanto dos jornais que representam os principais veículos do setor. Eles utilizaram para a pesquisa as versões eletrônicas dos jornais, disponíveis na internet.

A equipe norte-americana do ICMPA analisou 25 sites de jornais considerados importantes dos Estados Unidos, Inglaterra e Oriente Médio, em 2007. O resultado é reproduzido abaixo:

 

Reprodução do ranking da transparência de 25 jornais dos EUA, Inglaterra e Oriente
Médio, produzido pelo International Center for Media and the Public Agenda (ICMPA) – 2007

Fonte: International Center for Media and the Public Agenda (ICMPA), disponível aqui.

 

Como os indicadores usados pelas duas equipes foram os mesmos, é possível simular uma comparação entre o desempenho dos jornais brasileiros com os jornais pesquisados pela equipe do ICMPA. Para isso, vamos também converter os pontos dos jornais pesquisados pelo ICMPA em conceitos A, B, C, D e E, conforme procedimento adotado para os jornais brasileiros.

 

Desempenho conceitual de 25 jornais dos EUA, Inglaterra e Oriente Médio, montado a partir de dados
disponibilizados pelo estudo produzido pelo International Center for Media and the Public Agenda (ICMPA) – 2007

Conceito Padrão No. Jornais Jornais
A 90 a 100% dos 4 pontos possíveis = 3,6 – 4,0 1 The Guardian
B 70 a 89% dos 4 pontos possíveis = 2,8 a 3,5 6 New York Times, BBC, CBS, Christian Science Monitor, NPR, Financial Times,
C 50 a 69% dos 4 pontos possíveis = 2,0 a 2,7 6 LA Times, Miami Herald, Washington Post, PRT, MSNBC, Wall Street Journal
D 30 a 39% dos 4 pontos possíveis = 1,2 a 1,9 7 Int’l Herald Tribune, Newsweek, USA Today, ABC, Daily Telegraph, The Economist, Fox News
E Menos de 30% dos 4 pontos possíveis = 0,0 a 1,1 5 CNN, Al Jazeera (English), ITN, Time, Sky News

 

Mais da metade dos jornais avaliados pela pesquisa norte-americana estaria incluída nos conceitos A, B e C, enquanto 90% dos maiores jornais brasileiros em circulação avaliados estariam nos conceitos D e E, considerando-se os mesmos indicadores e o mesmo período de referência 2007/2008. Se fizéssemos um ranking único dos jornais avaliados pelas duas pesquisas, o melhor jornal brasileiro ocuparia a 10ª posição; dois estariam empatados na 15ª posição; um estaria na 24ª posição; dois estariam empatados na 29ª; e, fechando o ranking, três dos nossos maiores jornais em circulação seriam os guardiões da lanterninha, no final da lista de 35 jornais analisados.

Longo caminho

Os resultados do Programa Permanente de Autorregulamentação da ANJ confirmam, portanto, o que a avaliação dos pesquisadores José Osvaldo de Sordi, Manuel Meireles e Rogério Nahas Grijo sinalizava há quatro anos. Há um índice muito baixo de adesão a boas práticas de gestão editorial voltada para qualidade nos jornais brasileiros.

Em linhas gerais, tanto o levantamento da ANJ quanto o das pesquisas citadas acima se propuseram a avaliar as garantias que os jornais apresentam à sociedade para se credenciarem como organizações de credibilidade. Isso significa que as organizações analisam e mapeiam situações de potencial risco para a qualidade de seu produto – como a possibilidade do erro, o conflito de interesse, etc. – e desenvolvem mecanismos de reparação, compensação, orientação e justificação a fim de proporcionar o máximo de transparência em suas decisões editoriais.

Esses mecanismos não garantem por si a alta qualidade do produto oferecido à sua audiência e à sociedade. Por uma razão simples: eles não avaliam o produto, o conteúdo noticioso. Avaliam a disposição e a existência de mecanismos que tornam a organização que os adota mais responsável com o que publica e de que forma publica. Por inferência, uma organização mais comprometida com a busca da qualidade.

Para nos convencer de seu compromisso com a qualidade, os jornais brasileiros precisam urgentemente aprimorar sua gestão editorial. A iniciativa da ANJ em criar o programa de autorregulamentação, é importante reconhecer, constitui um passo importante. Vamos aguardar os resultados do ano que vem para avaliar os avanços, se existirem, e em que proporção, dos jornais associados à entidade.

Há pelo menos dois pontos, ainda, que necessitam ser incorporados em processos de avaliação regulares da imprensa. Primeiro, a efetividade de funcionamento dos recursos existentes. Por exemplo, se uma organização tem um mecanismo de correção de erros, qual é a sua eficácia na identificação dos erros cometidos e na sua reparação? Qual é a proporção de erros que ele consegue captar e corrigir?

O segundo ponto é a efetiva avaliação de qualidade dos produtos jornalísticos de uma organização. O objetivo seria avaliar se, além de firmarem compromisso com a pluralidade, as organizações seriam efetivamente plurais; se além de firmarem compromisso com a atenção a temas relevantes, as organizações publicariam efetivamente notícias sobre fatos relevantes. Nessa direção, temos ainda um longo caminho a percorrer. Tanto em termos de metodologias de aferição quanto em termos de processos editoriais de produção jornalística.

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[Josenildo Guerra é jornalista, professor da Universidade Federal de Sergipe, integrante da Rede Nacional de Observatórios de Imprensa (Renoi), autor de Sistema de Gestão da Qualidade aplicado ao jornalismo: uma abordagem inicial, uma das quatro publicações da Unesco/Renoi sobre indicadores de qualidade em jornalismo]