Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Entre modernidade e conservadorismo

15 de outubro de 1912. Nesta data começava a circular o jornal A Tarde, de Ernesto Simões Filho, periódico que se tornou marco do “jornalismo moderno” na Bahia. Descendente de grandes senhores de terra, Simões Filho nasceu na cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, em 1886, e mudou-se para Salvador aos 14 anos, onde produziu seu primeiro jornal, O Carrasco. Em 1907, formou-se em Direito e, no ano seguinte, aderiu ao grupo político liderado por José Joaquim Seabra, cujas posições defendeu a partir do jornal Gazeta do Povo, no qual trabalhou como redator. Mas o jornalista concretizou de modo definitivo sua paixão com A Tarde, ao qual se dedicou de modo intenso até sua morte, em 1957.

O periódico inspirou-se no carioca A Noite, de Irineu Marinho, fundado em 1911. Ao contrário dos seus contemporâneos baianos, A Tarde não teve seu capital aberto, mas foi montado exclusivamente por Simões Filho com as ações que herdara do avô, como relata seu biógrafo Pedro Calmon. As inovações já foram percebidas na edição de lançamento, que trazia, na primeira das quatro páginas, títulos com letras grossas e subtítulos explicativos. A quarta página era toda preenchida por anúncios, que também apareciam entre as notícias na segunda e terceira, porém cercados por grossas linhas pretas, diferenciando-os dos textos editoriais. Essas mudanças gráficas eram inovadoras, especialmente na diferenciação entre textos jornalísticos e publicitários, pois a mistura de ambos marcava os jornais do período. Outra inovação localizava-se na seção “Sport”, cujo texto de abertura trazia a assinatura de Hellenus, pseudônimo de Helena Simões, esposa de Ernesto, uma exceção na Bahia da época, onde os jornais dedicados às mulheres eram geralmente escritos por homens, com histórias morais, receitas e folhetins.

Vínculos rompidos

Junto às novidades gráficas, A Tarde introduziu a venda do espaço para publicação de informações de interesse privado, chamando tais anúncios de “populares”, precursores dos atuais classificados. A proposta chocou os demais órgãos de imprensa, acostumados de longa data à cessão gratuita do espaço a seus anunciantes. O então diretor do jornal Manhã, Antônio Marques dos Reis, durante uma discussão, chamou Simões Filho de “jornalista de balcão” por cobrar pela publicação de informações. Desprezando as ideias de modernização, o proprietário de A Tarde recorreu ao tradicionalismo para resolver a questão. Como relata Calmon, em seu depoimento à polícia Simões explicou: “Poderia tê-lo alvejado em lugar mortal. Mas como ele tentava fugir depois de proferir a ofensa, atirei-lhe nas nádegas para que ficasse gravado, como um estigma, na região glútea, o sinete do covarde.” O episódio ilustra a tensão vivida entre modernidade e conservadorismo na Bahia das primeiras décadas do século 20.

O engajamento em campanhas das mais diversas marcou a história de A Tarde na Primeira República. Simões Filho rompeu com o seabrismo no final de 1912 ao publicar críticas contra o secretário-geral do governador, Arlindo Fragoso. Especula-se que o diretor de A Tarde desejava o cargo para o qual não fora convidado. O secretário decidiu processá-lo e o governador apoiou o assessor contra o antigo aliado. Rompidos os vínculos políticos, o periódico começa um longo percurso na oposição ao governo.

Os levantes sertanejos

A campanha eleitoral de 1919 é considerada a mais acirrada da Primeira República e registra de modo explícito a atuação política dos jornais soteropolitanos. A Tarde foi o periódico que mais se destacou. Ele representava o descontentamento com o governo de uma oposição formada por diversos setores da elite baiana. O governador Antônio Moniz, seabrista eleito em 1916, realizou uma administração desastrada, agravada pelas perturbações externas, resultantes da crise econômica decorrente da I Guerra Mundial. Já no início do governo, substituiu os secretários do governo anterior por homens de sua confiança, muitos deles parentes e contraparentes, e alterou a Lei de Organização Municipal, reduzindo de quatro para dois anos os mandatos dos intendentes e obrigando-os a prestar conta ao Executivo Estadual sobre receitas e despesas, o que resultou na perda do apoio político de muitos coronéis.

Relatos dos jornais do período indicam que a cidade vivia, nesse momento, um estado de calamidade, com deficiências nos serviços públicos como água, luz, viação e policiamento. Tal sensação foi reforçada pelos movimentos operários e pela epidemia de varíola, que deixou centenas de mortos em poucos meses. As greves de 1919 foram inspiradas por movimentos populares que começaram a eclodir nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, reivindicando melhores salários, carga-horária de oito horas diárias e igualdade de condições entre homens e mulheres. Em junho de 1919, várias categorias aderiram à greve geral, mobilizando mais de 15 mil pessoas e obrigando o comércio a paralisar atividades por sete dias.

Paralelo às agitações urbanas, os antigos líderes regionais, que viam seu poder ameaçado por Moniz, também se levantaram no interior, ocuparam cidades, destituindo intendentes nomeados pelo governador e colocaram-se em choque com tropas de policiais, geralmente em desvantagem. Os levantes sertanejos chegavam às páginas dos jornais da capital e às tribunas federais. Os periódicos que apoiavam a oposição, entre eles A Tarde, colocaram-se ao lado dos revoltosos, classificando-os como heróis, posição reforçada com o passar dos meses.

Em outubro de 1919, já no clima de disputa que antecede as campanhas para sucessão governamental, a oposição ao governo decidiu propor eleição direta para a Intendência Municipal da capital, questionando judicialmente a validade da legislação que conferia ao governador poder para indicar o intendente. A proposta, defendida por Simões Filho, era aproveitar a eleição para o Conselho Municipal em novembro e apresentar candidatura de oposição para a intendência. Após negociação, a comissão escolhida definiu que o próprio jornalista seria candidato no pleito. Daí até o dia 7 de novembro, a capa de A Tarde dedicou boa parte do seu espaço ao convencimento do eleitorado sobre a inconstitucionalidade da lei que dava ao governador do Estado o direito de escolher os intendentes municipais e, consequentemente, afirmava a legalidade da eleição iminente.

As eleições aconteceram em 09 de novembro, tal como o previsto, porém o resultado não foi aquele que a oposição previa. Em protesto, A Tarde publicou a matéria “A orgia eleitoral”, na qual afirmava: “Não é facil dominar o nojo, para vencer a vasa de cloaca em que o sr. Antonio Moniz atolou o pleito de hontem. […] Nunca o desprezo pela liberdade do voto requintou em tanto cynismo”.

Passado o pleito municipal, os jornais voltaram atenções para a campanha de sucessão do governador. Como os modos de fazer política, que atrelavam resultados a acordos prévios com os coronéis responsáveis por currais eleitorais, permitiam, mesmo sem pesquisas, antecipar os resultados, a oposição traçou outra estratégia: passou a incentivar a revolta dos coronéis sertanejos, que já se conflagravam contra os desmandos do governador Moniz de modo esparso desde 1916 e a organizá-los, a fim de suscitar a intervenção federal na Bahia.

As eleições ocorreram em 29 de dezembro de 1919 e, com a constatação cada vez mais visível da derrota nas urnas, a oposição optou por provocar a agitação social, proposta cuja autoria é atribuída a Simões Filho, por seus biógrafos. Na cobertura do episódio, que ficou conhecido como Revolta Sertaneja, A Tarde assumiu duplo papel: insuflador dos coronéis do sertão e aterrorizador da população da capital. Nas narrativas de batalhas, o governo era apresentado como acuado diante de um exército esmagador de sertanejos. Os números de mortos e feridos não eram informados.

Reconhecimento e destaque

Durante os três meses de combate, as manchetes do jornal A Tarde, mantendo o mesmo tom exaltado, quase sempre destacaram os rebeldes e buscaram exaltar sua causa: “É a revolução!”, “Viva o sertão bahiano!”, “A reacção libertadora do Nordeste”. Mas, na realidade, não é possível precisar as informações a respeito do combate, pois, ao mesmo tempo em que a oposição tinha o objetivo de ampliar as dimensões do exército rebelde, o governo reduzia sua importância, para evitar o pânico e a intervenção federal.

Ao contrário das expectativas, o governo federal autorizou o exército a intervir na Bahia, em fevereiro de 1920, porém no intuito de pacificar o Sertão. O governador eleito. J.J. Seabra tomou posse em 29 de março de 1920 para seu último mandato, e o A Tarde publicou, no dia seguinte: “O ultimo acto da comedia – A posse da usurpação fez-se como enterro de defunto pobre, com pouca gente”. Os coronéis rebelados assinaram três acordos, o mais famoso deles, o “Acordo de Lençóis”, garantiu ao coronel Horário de Matos que suas tropas não entregassem armas e munições, que conservaria o governo dos municípios ocupados e receberia duas vagas fixas de deputados, uma na Assembleia Estadual e, outra, na Federal, para os candidatos indicados por ele.

Nessa transição de regime político, de século, de economia, inspirada pelo próprio tipo de política praticado, a paixão sobressai. A Tarde nasce em meio a esse clima e, embora traga inovações reais, não foge à regra, pois é fruto das contradições da própria sociedade baiana. Décadas mais tarde, vai continuar em lugar de destaque, trazendo inovações na chamada revolução tecnológica, como o primeiro periódico a praticar de modo organizado e consciente o chamado “jornalismo convergente” e mantendo-se, durante muito tempo, como o jornal de maior circulação no Nordeste.

Congratulações ao hoje centenário jornal A Tarde. Com sua trajetória de erros e acertos, como todas as histórias feitas por seres humanos, o periódico é um capítulo decisivo no jornalismo baiano e brasileiro e merece ser lembrado com reconhecimento e destaque.

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[Ana Spannenberg é jornalista, mestre em Comunicação e Culturas Contemporâneas (UFBA), doutora em Sociologia (UFBA) e professora do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Uberlândia]