Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O fim da vanguarda e a vanguarda do fim

Quando era criança aprendi a ler sobre o Estadão, a Folha e Diário da Noite. Meu pai tinha essa saudável mania de não acreditar muito nos jornais. Por isso, lia os três na intenção de absorver um tico de verdade.

Eu preferia passear pelas páginas de Esportes, saber mais do meu Corinthians, primeira e maior paixão. Doía e ardia, no entanto, aquele exercício dos olhos, entre letras miúdas e colunas estreitas. Tudo tão sisudo como suspeito.

Um noite, meu velho apareceu com um jornal novo, que fui desmembrar na sala, enquanto devorava bolachas de maizena com Ovomaltine. Senti no jornal um quintal grande, por onde se podia correr à vontade, sem arames farpados e muretas.

Nos esportes, o que era notícia espalhava-se numa espécie de imenso gramado em preto e branco. O Jornal da Tarde brotava como um jornal que respirava e deixava respirar.

Público desrespeitado

Já adulto, vivi bons anos no Estadão e, orgulhosamente, acabei por ver uma ou outra coisa minha publicada no irmão Jornal da Tarde. Na década de 1990, aceitei o desafio de transformar notícia de papel em notícia pixelizada. O resultado foi espetacular aprendizado acerca do inevitável processo de metamorfose nos veículos jornalísticos.

Percebi que o jornal não precisava da estrutura física roubada da árvore. Tampouco a alma da notícia residia na tinta de impressão. O século passado terminou com uma mensagem: o novo mundo era do acesso e não da posse, como diria Jeremy Rifkin.

Com o avanço político das forças progressistas e populares, parte da mídia impressa brasileira decidiu mais uma vez adulterar radicalmente seu ofício, especialmente nas páginas de Economia e Política.

Substituíram a produção da notícia pela panfletagem, recorrendo a métodos sórdidos para distorcer a realidade, sempre criminalizando aqueles que lutavam por inclusão e universalização de direitos. Deformaram tanto o cenário que, aos poucos, passaram a crer no próprio delírio retrógrado.

O padrão udenista de jornalismo foi gradualmente atingindo todas as editorias. O retrocesso na abordagem atingiu o esporte, a moda, a culinária, a cultura e até a cobertura de cidades.

Os publishers pensavam que prevaleceria, sempre, a palavra publicada e que a informação gerada por meios alternativos, especialmente na internet, jamais influenciaria decisivamente a opinião pública.

Os anos passaram velozes e a mídia hegemônica desconsiderou e desrespeitou boa parte de seu público consumidor. Cada vez mais, derivou para a direita, comprando e reproduzindo conceitos de intolerância, repulsa e ódio, mostrando-se estouvada pelas classes emergentes e por sua cultura.

Sonho possível

Em São Paulo, os jornais derramaram sobre suas linhas o veneno amargo da vingança, indignados com o pleito de 2002 e ainda inconformados com a Revolução de 1930. Nas trilhas de silício, a resposta foi rápida e muitos consumidores de notícias se converteram em protagonistas do processo, ousando produzir conteúdo confiável e relevante.

Gente cuspida das próprias redações tratou de abrir campos pioneiros no universo virtual. Portais, sites, blogs e mídias sociais passaram a divulgar o outro lado do fato, a outra versão da denúncia, anulando modelos maniqueístas de rotulagem dos atores sociais, construindo histórias mais críveis da cidade e do país.

Paul Virilio denunciou o perigo da “bomba informática”, ou seja, da construção de um sistema de comunicação destinado a desnortear e deseducar o cidadão, capaz de implodir o aparato da justiça, pulverizando o respeito e a fraternidade. Essa era (e é) a arma construída na indústria noticiosa tradicional. No caso brasileiro, no entanto, esse plano foi descoberto por consciências despertas, iniciadas ou não na ciência da comunicação.

O resultado foi o declínio do negócio. Afinal, o financiamento de emissores depende de bem intangível escasso na mídia brasileira: confiabilidade. O anunciante e o leitor pagam por resultados, inatingíveis se a reputação não for tratada como um ativo estratégico. E, óbvio, reputações não são construídas no moralismo ranzinza, muito menos na redação de ficções maliciosas, inspiradas nas cartilhas do Instituto Millenium.

Os jornais morrem pela obsolescência da forma e pela degeneração do conteúdo. Se estão dedicados à construção de indignações seletivas, vão desaparecer, mais cedo ou mais tarde.

Nos últimos meses, a imprensa paulista dedicou milhões de palavras ao noticiário do mensalão, procurando criminalizar o PT e seus simpatizantes, enquanto, como de costume, tentava beatificar o PSDB e seus seguidores. Depois de duríssima faina, constataram, boquiabertos, que haviam fracassado. A opinião publicada não fora capaz de influenciar decisivamente o voto na Grande São Paulo.

O JT nasceu como vanguarda, galante e perfumado. Morre do mesmo jeito, como símbolo do que não serve mais a uma sociedade globalizada, conectada e em processo inevitável de democratização.

Nasceu porque era o sonho possível. Desaparece porque é a correção necessária. E, neste caso, lidera uma fila.

Leia também

Parem as máquinas! Outro jornal foi para as nuvens – Alberto Dines

Réquiem para um jornal que nunca existiu – Sandro Vaia

Morto pelo mercado – Luciano Martins Costa

Mino Carta: “Morte do JT me entristece em dobro” – UOL

***

[Walter Falceta Jr. é jornalista]