Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os mistérios da numerologia oficial

Ninguém pode acusar a imprensa de abandonar o governo. A presidente Dilma Rousseff e seus ministros ocuparam as manchetes nas duas primeiras semanas do ano, quando os jornais dedicaram muito espaço às contas públicas, à inflação e aos problemas do setor elétrico. No fim do ano passado, os editores haviam destacado as manobras do Executivo para liberar R$ 42,5 bilhões para investimento já no começo de 2013. Nos primeiros dias do ano o grande assunto foi a operação, com envolvimento do Fundo Soberano, para ajustar o resultado fiscal à meta fixada para o exercício recém-encerrado.

O assunto rendeu boas manchetes e a cobertura foi animada. O ministro da Fazenda Guido Mantega, o secretário do Tesouro Arno Augustin e outros altos funcionários defenderam como legal o complicado arranjo para ajeitar as contas. Mas ninguém estava discutido o aspecto formal da arrumação e sim o resultado efetivo das operações de receita e despesa do governo. “Manobra fiscal faz Caixa ficar sócia até de frigorífico”, informou o Estado de S.Paulo, no sábado (5/1). No dia seguinte, o Globo dedicou manchete ao assunto e abriu uma reportagem de página inteira com o título “Contabilidade criativa”.

Inflação sob pressão

Até o fim da segunda semana do ano muitas outras matérias expuseram os expedientes usados para se chegar, contabilmente, ao superávit de 3,1% do Produto Interno Bruto (PIB) previsto na regra orçamentária. O assunto se desdobrou em reportagens sobre o acúmulo de restos a pagar (estimados em R$ 200 bilhões) e sobre detalhes das operações realizadas por meio do Fundo Soberano.

Numa dessas, ações da Petrobras foram transferidas ao Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) com uma diferença, para menos, de R$ 4 bilhões em relação ao preço de compra. O problema relevante, nesse caso, seria menos o prejuízo contábil do Tesouro na transação com um banco federal do que a própria desvalorização dos papéis da Petrobras, superada em valor de mercado pela Ambev.

Mesmo sem a questão fiscal, haveria motivo para alguma atenção aos problemas da estatal. “Desafio da Petrobras em 2013 é conter a queda na produção”, informou o Valor,em manchete, na segunda-feira (7/1). Na primeira página do caderno de empresas, uma linha fina sobre o título informava: “Falta de equipamento levou a queda de 40% na produção dos campos maduros”.

Os problemas da Petrobras e outros grandes assuntos enriqueceram a pauta, mas sem jogar para segundo plano as questões fiscais. Foi esse o foco do Estadão naquela segunda-feira: “‘Orçamento paralelo’ do governo federal chega a R$ 200 bilhões”, segundo a manchete da primeira página. A linha fina abaixo do título acrescentou: “Conta de restos a pagar indica ‘bagunça orçamentária’, segundo especialistas”.

Desde o início da cobertura sobre a arrumação das contas de 2012, palavras como “artifício”, “manobra” e “maquiagem” foram usadas tanto em editoriais e colunas quanto na cobertura do dia a dia. A questão da credibilidade do governo foi logo destacada por economistas entrevistados. No sábado (5/1), a principal matéria do caderno “Mercado” da Folha de S.Paulo foi introduzida com a informação: “Segundo analistas, contabilidade criativa pode levar investidor a duvidar da saúde das contas do governo”. A manchete da página criava uma ponte com outro tema delicado: “Manobras fiscais aumentam aposta de inflação elevada”.

Quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os números oficiais da inflação de 2012, medida pelo Índice de Preços do Consumidor Amplo (IPCA), todos estavam com a lente preparada para examinar os detalhes. O próprio pessoal do IBGE contribuiu para o exame crítico, apontando o efeito das reduções temporárias de impostos sobre automóveis e outros bens duráveis. Mesmo com essa contribuição, o resultado final ficou muito acima da meta de 4,5%. “Inflação fica em 5,84% e deve iniciar o ano sob pressão”, noticiou o Estadão no título principal da primeira página.

Custo e redução

Folha de S.Paulo, Estadão e Globo ressaltaram a superação, pelo terceiro ano consecutivo da meta (ou, mais brandamente, do centro da meta). O enfoque do Valor foi mais caridoso: “IPCA fica na meta, apesar de serviços e alimentos”. Explicação necessária: “na meta”, nesse caso, significa “dentro da margem de tolerância de 2 pontos porcentuais”. O mesmo título valeria para o resultado de 2011, quando o IPCA subiu 6,5% e bateu no limite superior.

Mais do que os títulos mais ou menos caridosos, importante foi a amplitude da maior parte da cobertura, com bom espaço tanto para as explicações e justificativas oficiais quanto para a análise de especialistas e dos próprios jornalistas.

Nas duas primeiras semanas de 2013, o terceiro grande assunto nacional, na área econômica, foi a situação do setor elétrico. A escassez de chuvas em grande parte do país fez baixar perigosamente o nível dos reservatórios. O noticiário refletiu muita especulação sobre a possibilidade de racionamento. Parte da informação sobre esse risco saiu do próprio governo, sempre de forma reservada e sem identificação das fontes. Oficialmente, as autoridades nunca reconheceram essa hipótese. Ao contrário: em todas as suas declarações públicas, tentaram exibir tranquilidade.

O uso mais intenso das centrais térmicas para garantir o suprimento elevará o custo da energia, mas, ainda assim, haverá uma redução média de 20,2% nas contas de luz, garantiu o governo. Também essa redução é parte da política oficial de controle da inflação, como lembrou o ministro interino da Fazenda, Nelson Barbosa.

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[Rolf Kuntz é jornalista]