Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ciência na corda bamba

O anúncio divulgado na sexta-feira (11/1) de que o The New York Times havia extinguido sua editoria de Meio Ambiente deixou ecólogos de todo planeta preocupados. Desde que foi criada, em 2009, a seção era considerada uma das mais profissionais e competentes por leitores em todo mundo. Era também uma das de maior reputação nos sites e serviços replicantes. Na selva da cobertura ambiental e climática tem de tudo (como em qualquer outra área jornalística), desde o simples terrorismo e alarmismo apocalíptico até os céticos que ignoram ou desdenham as mudanças climáticas. A seção de meio ambiente do NYT dava, sem dúvida, um selo de qualidade e sensatez aos assuntos que abordava.

Ainda não está clara a consequência do desmonte da seção. Oficialmente nenhum jornalista vai ser demitido, apenas realocado em outras editorias. A direção do jornal diz que se trata de um “assunto puramente estrutural” (ver aqui). A justificativa, que até faz sentido, é a de que, quando foi criada, a editoria era para tratar o meio ambiente como uma área “singular e isolada”, mas agora as notícias da área têm implicações “nos negócios, economia, saúde, nacional e local”. A direção se justifica: “Elas [as notícias] são mais complexas. Precisamos de pessoas trabalhando em editorias diferentes que possam cobrir partes diferentes dos assuntos”.

Uma das intenções especuladas é que o jornal pretende tirar a notícia ambiental de uma espécie de “gueto verde”, frequentado apenas pelos apaixonados e pelos militantes radicais, abrindo assim a penetração do assunto por outras editorias.

Valor da experiência

Na verdade a cobertura científica do meio ambiente e mudanças climáticas teve nos últimos anos um desempenho tão imprevisível quanto a temperatura do planeta. Em algumas áreas e publicações declinou, em outras melhorou e ampliou, conforme um amplo balanço divulgado no início deste anos por The Daily Climate.

Que o conhecimento científico e tecnológico é o fator de maior impacto na vida futura das pessoas quase ninguém discute. Paradoxalmente, os meios de comunicação estão pautando suas ações na direção contrária, diminuindo drasticamente o espaço reservado para assuntos de Ciência e Tecnologia. Assim, editores e diretores tentam contrabalançar a sangria de recursos para a imprensa tradicional, que perdeu 40% das receitas na última década. Compreensivelmente, cortam custos nas áreas que eles acham menos estratégicas.

O paradoxo é que aquela que seria a mais impactante área do conhecimento, a Ciência e Tecnologia, é a que mais drasticamente é atingida pelos cortes nas empresas de comunicação. Contra os 40% de queda na imprensa em geral, as seções de Ciência foram ceifadas em 80% – o dobro – desde 1989. Dos 95 jornais importantes que tinham cadernos semanais de Ciência e Tecnologia, 76 foram fechados, segundo levantamento da veterana repórter de ciências Cristine Russel feito para o Centro de Imprensa, Política e Políticas Públicas da Universidade Harvard.

Algo semelhante ocorreu também nas redes de TV, inclusive na TV a cabo. Em 2008 a CNN desmantelou a sua editoria de Ciências, dissolvendo-a num balaio que passou a incluir medicina e meio ambiente, sobrecarregando os profissionais que restaram. Meses depois, a NBC tomou a mesma decisão. Mesmo antes disso a tendência já existia. O levantamento do Projeto para Excelência em Jornalismo, do Pew Research Center, feito em 2007, mostrava que em cada cinco horas das TVs a cabo havia mais de 26 minutos de crimes, 12 minutos de acidentes e desastres, 10 minutos de celebridades e migalhas de 1 minuto e 25 segundos de meio ambiente e, finalmente, 1 minuto de ciência.

Mais recentemente, refletindo o aumento do interesse popular em assuntos ambientais, vários noticiosos da TV a cabo maquiaram sua aparência com rótulos verde (oGo Green da CNN) e de sustentabilidade, truque que muitas empresas de todos os tipos adotaram como tática de marketing, na maioria dos casos.

Felizmente grandes jornais, como o The New York Times eWashington Post, não sucumbiram à tática suicida de cortar custos na qualidade e vão bem economicamente, graças às suas edições digitais. A seção de Ciências do New York Times, que não foi afetada pela recente reestruturação, exibe nada menos que 20 repórteres e redatores fixos, muitos deles veteranos especialistas, justamente aqueles que os jornais menos inteligentes adoram demitir ou trocar por jornalistas menos experientes e mais baratos.

“Critérios” editoriais

Jornais podem ganhar um fôlego provisório fazendo cortes imediatistas, mas no médio prazo perdem a qualidade – especialmente a qualidade dos leitores – sem garantias de que possam conquistar faixas mais amplas e simplórias de consumidores.

Porém cada jornal ou publicação tem idiossincrasias que os tornam mais vulneráveis à perda de qualidade. Minha experiência pessoal no Estado de S.Paulo, como redator e editor na área de Ciência e Tecnologia, é de que o jornal dos Mesquita mergulhou numa espiral de descrédito gradativo ao longo de décadas, e não apenas com o surgimento da internet e outras publicações mais leves.

Nas primeiras décadas do século passado, o Estado de S.Paulo podia se orgulhar de ter sido um dos únicos jornais do Hemisfério Sul a noticiar o aparecimento da Teoria da Relatividade, de Albert Einstein. A família Mesquita foi também uma poderosa influência na criação da Universidade de São Paulo.

Mas depois de 1964 as relações do jornal com a comunidade científica e acadêmica azedaram irreversivelmente. E não só politicamente. A família assumiu posturas rígidas e em alguns momentos até anti-intelectuais. De um jornal que no começo do século 20 noticiava Albert Einstein na primeira página, assisti ao dia em que o familiar no comando repreendeu por escrito uma jornalista de ciência, Ruth Helena Bellinghini, por causa de um artigo baseado no site da revista Nature. A matéria da Nature anunciava com destaque que um cientista brasileiro havia resolvido um paradoxo relativista: um submarino viajando a velocidade próxima à da luz ganha mais massa, e por isso afunda mais?

O ranço anti-intelectual agravou depois do afastamento do então diretor de Redação, Antônio Pimenta Neves. Uma diretoria tosca colocada às pressas no lugar do assassino cometeu desmandos bizarros. O Estado de S.Paulo tornou-se o único jornal do planeta a demitir não um, mas dois jornalistas com cursos de especialização no Massachussets Institute of Technology (MIT) – Alessandro Greco e a Ruth Bellinghini. As causas das demissões foram mesquinhas e resultado da prepotência de uma diretoria anti-intelectual.

Ruth já estava na mira por ter se recusado a escrever uma bizarra história sobre um médico australiano que afirmava que a masturbação evita o aparecimento do câncer de próstata. Ela alegou que o tal trabalho do médico não fora publicado em revista de ciência nem tinha revisão de pares (peer review). A matéria acabou sendo traduzida e publicada com destaque, “porque dava leitura”. Já o Alessandro foi demitido por publicar um artigo sobre doenças do asbesto e amianto. A associação nacional dos fabricantes do cancerígeno reclamou diretamente com a diretoria e obteve a cabeça do jornalista.

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[Flávio de Carvalho Serpa é jornalista]