Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Editores falam sobre a crise

O questionamento do papel da grande imprensa na atual campanha eleitoral foi além das escaramuças habituais. Criou-se um clima de intenso atrito entre, de um lado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e, de outro lado, alguns dos principais órgãos de imprensa do país, que respondem a críticas em suas páginas de opinião e de noticiário ‒ neste último caso ouvindo personalidades que rebatem as falas do chefe do governo.


É muito raro que, em circunstâncias como a atual, sejam ouvidas as pessoas que têm a responsabilidade de decidir o que entra ‒ e como entra ‒ e o que não entra nas páginas de jornais e revistas. O Observatório da Imprensa procura dar, aqui, voz e nome àqueles que profissionalmente falam através de editoriais, manchetes, títulos etc.


Seis perguntas foram feitas ao editor de Opinião do Globo, Aluizio Maranhão, ao diretor de redação da Veja, Eurípedes Alcântara, e ao diretor de conteúdo do Estado de S.Paulo, Ricardo Gandour. A diversidade das respostas, em tom e substância, renova a lição de que as generalizações empobrecem a percepção da realidade e induzem quem as faz a errar nas avaliações do papel da grande imprensa. Aluizio Maranhão foi ouvido por telefone e os demais responderam por escrito. Eis as entrevistas.


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O presidente Lula disse que veículos de comunicação agem como partidos políticos (e devem ser, como tal, derrotados). O que pensa dessa afirmação? Como responde à acusação de que seu veículo é partidário, sem o declarar, de um dos candidatos à presidência da República?


Aluízio Maranhão (O Globo) – Revela absoluta falta de compreensão do que é a imprensa profissional e independente. Nossa opinião a esse respeito está no editorial ‘Lula e a visão autoritária‘ (21/9). O presidente da República, devido à tensão da campanha, ficou muito contaminado pela visão de um núcleo de esquerda autoritária que há em seu governo, de onde emanaram propostas como a da Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual, proposta pelo Ministério da Cultura), a do controle social da mídia e contrabandos que faziam parte de um plano supostamente de direitos humanos. Ele está muito sensível e ouvindo esse núcleo. Mas há fatos. Desde o mensalão, denunciado por um então aliado do governo, Roberto Jefferson, e que será julgado pelo Supremo Tribunal Federal. Ali desenvolveram a tese da imprensa golpista, um truque para tirar do foco da sociedade fatos substantivos. Depois do mensalão vieram os aloprados, mais recentemente o vazamento de informações sigilosas de cidadãos, a grande família Erenice, que, por sinal, o governo não manteve no cargo. A imprensa publica esses fatos substantivos.


Há manipulação eleitoral? Sim. Sempre há. Por exemplo, existem a imprensa chapa-branca e os blogues chapa-branca. Essas pessoas têm todo o direito de se manifestar. Mas a questão da imprensa profissional e independente é outra. Entre os principais veículos de mídia que fazem parte desse grupo, os mais novos, como a TV Globo e a revista Veja, têm mais de 40 anos de existência. O Globo e a Folha de S.Paulo têm mais de 80 anos e o Estado de S.Paulo tem 135 anos. Na maior parte dos casos, com as mesmas famílias acionistas. A prática dessa imprensa vem amadurecendo com a própria República brasileira. São veículos que têm fontes diversificadas de financiamento, o que não quer dizer que não se tenha opinião.


Eurípides Alcântara (Veja) Por instinto e esperteza, o presidente Lula atrai qualquer questão para o centro gravitacional do universo político-eleitoral, que é a praia dele, a arena onde é o campeão e dificilmente pode ser batido. Isso é bom para Lula. Mas só para Lula. Para o Brasil é um retrocesso, pois a política de Lula é a da polarização, tendo como ponto fulcral sua imensa popularidade. O craque Neymar, do Santos, decidiu rejeitar uma proposta milionária do Chelsea, da Inglaterra? É outra prova de que sob Lula o Brasil não mais se curva aos europeus ‘de olhos azuis’. Um eclipse lunar será parcial no Hemisfério Norte, mas total no Brasil? É um sinal dos céus de que ele, Lula, é o escolhido. A imprensa publica denúncias bastante críveis de roubalheira na Casa Civil? Se forem contra Lula, não são boas para o Brasil. Esses exemplos são caricaturais, mas servem para enfatizar a polarização simplificadora promovida pelo lulismo.


Em um ambiente assim, não há neutralidade ou imparcialidade suficientes aos olhos do governante. É cara ou coroa. Ou se está ao lado de Lula e do Brasil, uma vez que esses conceitos são propositadamente confundidos, ou se está contra. As necessidades de adulação do presidente são justificadas pela tese de que da satisfação delas depende o destino glorioso da nação. Obviamente, nenhuma revista, jornal ou programa televisivo noticioso pode atender tão aguda e permanente cobrança por elogios. Isso, então, gera no presidente, nos seus áulicos e no vasto contingente de adoradores, a sensação de que a imprensa está sempre contra ele e o governo. Não está. Simplesmente, a imprensa não pode estar alinhada com o Executivo incondicionalmente todo o tempo.


Governo e povo não se confundem. São entidades distintas cujas relações devem ser mediadas pelas instituições. As tentativas de estabelecer ligação direta com o povo sempre resultaram em experiências populistas ruinosas. Governo e imprensa precisam se repelir, se estranhar, manter relações tensas e conflituosas. Isso é sinal de vitalidade. Não existe jornalismo a favor. Por essa razão, eu concordo com o presidente quando ele diz que Veja é partidária. A revista toma partido dos princípios sadios que governam nossa profissão, cujo exercício não se rege pelos ditames e vontades da administração federal. Ignorar essa realidade é abrir caminho para a promiscuidade. Isso é totalmente diferente de apoiar um candidato sem declarar a opção publicamente, o que seria não apenas inútil, mas estúpido da nossa parte.


A promessa de Lula de ‘derrotar’ a imprensa pelo voto se assemelha aos rugidos dos generais radicais na ditadura militar, que instalou censores nas redações e as via como refúgios de comunistas e outros inimigos ideológicos do regime. O inimigo interno agora, aos olhos do lulismo, oferece outro tipo de perigo. A ameaça vem da revelação dos assaltos ao dinheiro público e do desmonte da farsa de que o Brasil e o mundo começaram com a posse de Lula, em janeiro de 2003. Ora, como qualquer presidente, Lula foi empossado para dirigir o Poder Executivo, tentar não fazer nenhuma grande besteira e não impedir as classes produtivas de produzir – e, claro, ir embora ao fim do mandato. O resto é mistificação populista.


Ricardo Gandour (O Estado de S. Paulo) – Perde-se a oportunidade de contribuir para um conceito que tem que avançar no país, e não retroceder. A imprensa não é partidária, mas exerce, sim, um poder junto à sociedade, um poder não partidário. É preciso saber conviver com esse poder, construído a partir do cumprimento da missão jornalística de revelar o que não quer ser mostrado, de obter o que não quer ser dito. É um papel incômodo e desequilibrador por definição. E será tanto maior quanto mais livre for. O Brasil hoje vive plena liberdade de imprensa. Mas ações e testemunhos dos governantes mais reconhecidos e populares podem, com o tempo, prejudicar essa percepção junto à população.


Concorda com a afirmação da presidente da Associação Nacional de Jornais, Judith Brito, segundo a qual a imprensa cumpre hoje no Brasil a função de oposição?


Aluizio Maranhão – Não vejo dessa forma. Acho que é até um erro dos partidos de oposição cobrarem da imprensa uma postura que eles deveriam ter. Entre os veículos da imprensa profissional e independente cada um tem sua ética, sua percepção da realidade. Como editor de Opinião, constato isso diariamente. O que nos une a todos é a postura pró-liberdade de informação e de imprensa e contra a tentativa de se adotar uma legislação limitadora dessas liberdades. Se isso nos coloca em oposição ao governo Lula, que seja. Uma coisa é ser um jornal americano, numa sociedade com dois séculos de democracia representativa, na qual há partidos com ideologias e propostas nitidamente contrastadas. Nesse caso, um jornal pode dar apoio a uma visão ou candidatura partidária. Outra, muito diferente, é ser um jornal num Brasil onde a democracia sofreu sucessivos curtos-circuitos e o atual período democrático, de 25 anos, é o mais longo de nossa história republicana. Como ser partidário se o PT é uma frente, o PMDB uma federação de interesses? Seria impossível, por exemplo, o Globo se engajar com os tucanos, ou o Estado com o DEM. O compromisso da grande imprensa profissional é com a objetividade e com o pluralismo. Ela deve ser porta-voz das principais correntes da sociedade. Promover o debate e informar. Oposição ou não, imprensa independente, profissional, cumpre uma função pública de fiscal do Estado, em nome da sociedade. O direito constitucional da liberdade de imprensa é, na verdade, concedido em nome da sociedade, e exercido em nome dela. Se, ao cumprir esta função estratégica, a imprensa faz oposição, que seja. Aliás, como se dizia: imprensa é de oposição; a oficial é armazém de secos e molhados. A chave de tudo é a credibilidade, predicado que a imprensa independente tem de defender a todo custo.


Eurípedes Alcântara – Concordo em parte. A imprensa vem cumprindo dois dos papéis que deveriam ser exercidos pela oposição. O primeiro é o de descobrir e expor as lambanças éticas de integrantes do governo com acesso à chave do cofre. O segundo tem sido o de acionar o alarme quando prosperam as ameaças ao funcionamento normal das instituições. Mas uma oposição é algo muito mais complexo. Ser oposição é conceber um modelo alternativo, mais eficiente e menos custoso de governo; um modelo que seja viável ao oferecer esperança de progresso material e social aos eleitores e perspectiva real de poder aos políticos. A imprensa até pode, e o faz muitas vezes com surpreendente clareza, produzir o primeiro rascunho do que seria um governo mais eficiente – mas não tem como passar disso.


Ricardo Gandour – Eu me lembro dessa afirmação, mas ela se deu num contexto bastante específico. Falava-se, à época, da falta de debates por parte da oposição, e que a imprensa acabava suprindo essa lacuna naquele momento. Nesse sentido e naquele contexto, concordo.


Do ponto de vista do processo político e das instituições, como avalia o acirramento de tensões que se verifica na presente campanha eleitoral para a presidência da República a despeito de uma das candidaturas revelar-se em sucessivas pesquisas bem à frente das demais?


Aluizio Maranhão – As tensões atuais derivam muito da visão que José Dirceu deixou transparecer em sua fala a sindicalistas na Bahia: ‘Com um governo Dilma, vamos conseguir colocar em prática o nosso projeto político’. Mas eu pergunto: que projeto, se o PT é uma frente? E já foi mais ampla, tanto que o PSTU e o PSOL saíram dele. A origem de todas essas forças foi uma grande frente que lutou pela redemocratização. Eu fiz parte da última equipe do jornal Opinião. No final do governo [Ernesto] Geisel [1974-79], quando o processo de abertura se consolidou, a equipe brigou com o dono do jornal, Fernando Gasparian, que estava à nossa direita, na qualidade de representante da ‘burguesia nacional’. O jornal acabou. Depois eu entendi que aquilo tinha sido inerente à natureza do processo de abertura. Existe, em vários países da América Latina, um surto de manifestações como o chavismo e o kirchnerismo. Mas o Brasil tem uma grande classe média e é um país mais complexo, ou mais sofisticado.


Eurípedes Alcântara – Antes de mais nada é o caso de se lamentar o fato de não existir campanha política para a presidência no Brasil. Aqui o processo eleitoral se desenrola em três fases, todas estéreis. A primeira é a fase das pré-campanhas. Ela é invisível para o eleitor. Dá-se nos bastidores, em torno de nomes e prováveis alianças. Nessa fase ninguém quer discutir programas de governo, com a desculpa de que oficialmente não são candidatos. A segunda fase começa com a unção dos candidatos nas convenções e o registro das candidaturas junto à Justiça Eleitoral. Nela também não se fala nada de proveitoso nos poucos e amarrados debates, ficando no ar a promessa de que haverá mais substância na terceira fase, a dos programas de televisão. Chega a terceira e última fase e ela é dominada não por temas, mas por ataques de lado a lado, que se arrastam até o dia de apertar os botões da urna eletrônica. A imprensa se perde cobrindo primeiro os bastidores de um espetáculo sem emoção, por previsível; depois mergulha na contabilidade impositiva das pesquisas de intenção de voto. Na terceira fase, as matérias giram em torno dos marqueteiros e suas estratégias. As coisas sérias são discutidas apenas marginalmente.


No topo de tudo isso, tornando o processo ainda mais estéril, estão as pesquisas eleitorais em que 2.000, 3.000 ou 10.000 pessoas, cientificamente escolhidas e entrevistadas, revelam, com inacreditável precisão, as intenções de votos de 135 milhões de eleitores. Em países onde o voto não é obrigatório as pesquisas são menos precisas e nunca ocupam as manchetes dos grandes jornais. No Brasil é diferente. Aqui, com o voto obrigatório, as pesquisas praticamente antecipam o resultado. O ato cívico de escolher um candidato vira uma mera formalidade. O eleitor vai à seção eleitoral apenas para confirmar o vencedor ou chancelar um perdedor, lá no fundo da alma ciente de que, ao contrário do que se diz, seu voto não muda nada.


Essa é a triste realidade. Quando uma candidatura dispara nas pesquisas, a liofilização fica ainda mais evidente. Nesse contexto, o acirramento de tensões em virtude da revelação pela imprensa de esquemas de assalto aos cofres públicos também tende a ser tratado do ponto de vista meramente contábil. Vai tirar pontos do líder? Quem vai lucrar eleitoralmente com as denúncias? É de uma pobreza franciscana. Muito mais produtivo seria partir das denúncias e suas consequências e discutir como evitar que o dinheiro do povo seja a entrada para o parque de diversões dos donos do poder.


A lei eleitoral, rígida como é, também contribui para o processo de esmagamento das questões vitais. A lei tenta, principalmente, evitar que um candidato ofenda pessoalmente outro. Ora, a eleição deveria ser justamente o período em que os candidatos pudessem brigar com todas as armas legais, entre elas o deboche, o escárnio e a estridência do discurso. Agindo assim um candidato ajudaria a revelar o real perfil do adversário e, ao mesmo tempo, informaria os eleitores sobre suas próprias virtudes e defeitos de personalidade.


A imprensa não pode cair na armadilha de que o período eleitoral suspende a Constituição. Tem denúncia crível sobre roubalheira na Casa Civil? Publique com a ênfase necessária, sem pensar se isso ajuda A ou B. Ao fim e ao cabo, porém, a denúncia torna o processo eleitoral menos sonolento e desinteressante, mas não tira sua previsibilidade nem o enriquece do ponto de vista das questões programáticas.


Ricardo Gandour – Não vejo tanto acirramento de tensões assim. Ao contrário, vejo ampla parcela da sociedade, em todos os níveis, anestesiada pelo saudável e necessário progresso material que temos experimentado, mas colocando num plano secundário a questão dos valores e da ética na gestão pública, por exemplo.


Como avalia a hipótese de que existe um afastamento entre a chamada grande imprensa e uma avassaladora maioria da população indiferente a críticas ao governo do presidente Lula?


Aluizio Maranhão – Não vejo esse divórcio. Os jornais da grande imprensa aumentaram a circulação. O Extra vende mais do que o Globo e disputa o primeiro lugar com a Folha de S.Paulo. A TV Globo é líder de market share num país onde 98% das residências têm aparelhos de televisão. Não existe este ‘controle da mídia’. Afinal, as pessoas estão livres para clicar o controle remoto e trocar a Globo ou Record e SBT pela TV Brasil, por exemplo. Podem também não comprar o Globo, Estadão e Folha e trocá-los por outro jornal. A concorrência é dura, embora possa não parecer para burocratas de partidos e/ou funcionários públicos.


Eurípedes Alcântara – A grande imprensa nunca falou para ou pela maioria. Felizmente. Na China e na Índia os jornais atingem dezenas de milhões de leitores, mas ainda assim seus leitores são minorias em países com populações girando em torno do 1 bilhão de pessoas. A imprensa fala para a minoria. Sob o lulismo isso é denunciado pela propaganda oficial quase como um crime. Lula tem uma irrefreável tendência para fazer aliança com as ruas, contornando as liturgias institucionais e, assim, se liberando para fazer as mais estapafúrdias declarações, que espera não ver criticadas nos jornais. As tiragens de todas as revistas noticiosas e dos grandes jornais do Brasil somadas, ignorando aqui a superposição de leitores de múltiplas publicações, não chegam nem perto de atingir, quanto mais influenciar, a ‘avassaladora maioria’ a que o senhor se refere. A grande imprensa fala para a minoria letrada dos cidadãos que exercem funções políticas, dirigem as empresas, ocupam cargos de gerência, estudam em universidades, estão, enfim, em posições que exigem o acesso à informação de qualidade e com credibilidade. Não é preciso nem lembrar que essas minorias, em todos os tempos e em todos os regimes, mesmo os que se pretenderam comunistas, formam a elite dirigente da nação. O afastamento que existe, e que o governo tenta fazer ainda mais conspícuo no Brasil, se dá entre a grande imprensa e os militantes radicais e dirigentes do PT. Uma ironia. Nos anos 1980 e 90, o PT foi o partido que mais se beneficiou da boa vontade dos jornalistas e da simpatia dos donos de jornais e revistas. Quando chegou ao poder, tornou-se inimigo da imprensa livre. Nenhuma surpresa para quem conhece o metabolismo histórico dos regimes que tendem para o autoritarismo, sejam de esquerda ou de direita. Fomos apenas companheiros de viagem. É hora de a liberdade descer do trem. Um comissário da verdade assumirá a missão de informar o povo.


Ricardo Gandour – Penso que essa formulação é inadequada, mesmo como hipótese. A imprensa deve exercer também a missão de antecipar, de discutir tendências e o futuro. O que seria o oposto desse ‘afastamento’, escrever e publicar aquilo que as pessoas gostariam de ler, ou mesmo evitar o que elas não gostariam de ler? Isso não é jornalismo!


O senhor aceita a crítica de que a imprensa só enxerga aspectos negativos da atividade do governo federal, feita reiteradas vezes pelo presidente da República?


Aluizio Maranhão – Falo pelo Globo: discordo. O que eu vejo são fatos. Espaços são concedidos para que todos se manifestem. O direito de resposta é amplamente observado. Entre os colunistas, há representantes do governo. No nosso caso, por exemplo, Aloizio Mercadante e Antonio Palocci, temporariamente afastados de suas colunas porque são candidatos a cargos eletivos. Fatos são fatos. E há discussões. Não se pode debater o programa Bolsa Família? Não se pode questionar se não seria melhor aplicar na educação os recursos que ele absorve? O Globo apoiou a hidrelétrica de Belo Monte, contra a opinião de alguns de seus próprios colunistas. Dissemos que o Ibama criou dificuldades para conceder licenças ambientais. O que acontece é que o PT é muito adestrado na guerra de informação. E o presidente Lula seguiu a tática de jogar areia nos olhos da sociedade para afastar as atenções de coisas objetivas, como a quase destruição dos Correios.


Eurípedes Alcântara – O que chama a atenção dos jornalistas são os fatos excepcionais – mais os ruins que os bons. No governo Lula, porém, deu-se o inverso. A imprensa passou a ver muito mais os acertos, deixando-se obnubilar pelo carisma de Lula e sua circunstância extraordinária – a do proletário que chegou ao poder pela via pacífica. Temerosa de ferir o mito, a imprensa rendeu-se a Lula nos primeiros anos de seu governo. Depois paralisou-se, talvez por não querer atrapalhar o que era vendido como um milagroso pacto social que afastou do país a iminência de uma guerra de pobres contra ricos. Aos poucos, a imprensa foi recobrando os brios e até os cartunistas, emasculados pelo afã de agradar Lula, voltaram a rir dos poderosos e das elites – os governantes petistas. Como se sabe, a normalidade é nossa nêmese. A imprensa publicou com a atenção devida todas as boas coisas que ocorreram no Brasil com Lula no governo. No caso de Veja, desafio qualquer um a encontrar um único fato positivo na área econômica e social que não tenha sido proporcionalmente relatado pela revista. Os principais ministros de Lula tiveram voz nas ‘Páginas Amarelas’. Demos inúmeras capas celebrando o aumento do crédito popular, a maturidade da política econômica e a bem postada defesa contra as crises externas.


Ricardo Gandour – De forma alguma. A imprensa como um todo ‒ e digo, especialmente este jornal [Estado de S.Paulo] ‒ cobriu, nos últimos anos, de forma ampla, os diversos avanços que o país tem experimentado, no agronegócio, nas descobertas petrolíferas, na economia, nas medidas anticíclicas de combate aos efeitos da crise mundial, nas campanhas de vacinação, na biotecnologia, entre tantos outros. E vamos continuar cobrindo. E fizemos isso ao mesmo tempo em que não deixamos de fiscalizar a gestão pública, o uso de recursos, o nepotismo, a falta de transparência, as ineficiências da máquina pública, os atrasos na infraestrutura. E em todas as esferas, federal, estadual e municipal.


Agora, num processo eleitoral, no momento em que o país pensa (ou deveria pensar) no seu futuro, é natural que o foco se volte com ênfase redobrada para o polêmico, para o nevrálgico. É aí que está o ponto: ser objeto de debates e ter que se explicar dói. O servidor público deve, sim, satisfações à sociedade! A opção pela carreira pública pressupõe privações (e por isso mesmo teria que ser muito bem remunerada) e limitações, como, por exemplo, não ter familiares na cadeia produtiva direta (fornecedores, parceiros etc.). A máquina pública não pode ter dono, os ocupantes estão ali num mandato do povo. O que querem os governantes que reclamam da imprensa, não querem ter incômodo, não querem sentir dor? Isso é infantilização do processo, reforçada pela postura paternalista.


O senhor avalia que determinadas manifestações ‒ como as do presidente Lula, da ex-ministra Erenice Guerra, do ex-ministro José Dirceu e da candidata Dilma Rousseff ‒ apontam na direção de ameaças sérias à liberdade de imprensa, ou imagina que, serenados os ânimos após a disputa eleitoral, o assunto passará a segundo plano?


Aluizio Maranhão – Como sessentão que trabalha em redações desde 1970, sou cachorro mordido de cobra. Tenho uma espécie de reação pavloviana toda vez que vislumbro o risco de cerceamento da liberdade de imprensa. Não quero de modo algum reviver o clima dos anos de ditadura. Mas vejo o quadro atual com otimismo. Acho que nossas instituições republicanas já ganharam ossatura suficiente para passar ao largo de tentações chavistas. O que há é muito jogo de cena para disputar espaço, na mídia, com revelações como as que envolvem Israel Guerra, filho da ex-ministra Erenice. Acho que, passadas as eleições, as coisas tendem a amainar.


Eurípedes Alcântara – A imprensa livre organizada em empresas não faz parte do mundo ideal de boa parte dos petistas. Nele a imprensa é livre apenas para concordar com o governo, elogiar o Lula e relativizar as roubanças no alto escalão. Quando a imprensa foge do script ela é chamada de golpista. Inexiste em parte considerável do PT o convencimento de que a imprensa não pertence ao governo e nem ao Estado. Eles não podem conceber um sistema meritocrático que, quando funciona, leva aos postos de decisão nas redações os mais preparados e obstinados, os mais estudiosos e talentosos – e não os indicados pelo partido ou os mais alinhados com o poder. Eles não conseguem entender que os fatos são teimosos e que a revelação deles é a principal obrigação da imprensa, cuja lealdade é com os cidadãos, em especial os cidadãos que são seus leitores. Não podem entender como justamente por se desincumbir bem de sua missão de informar uma empresa jornalística pode ser rentável. A história mostra que é tanto maior e mais séria a ameaça à liberdade de imprensa quanto mais poderoso, ambicioso, endeusado e incontrastável for o governante. É maior a tentação de calar os críticos em alguém que se julga iluminado e predestinado. Por seu turno, a imprensa pode e precisa ser cobrada sempre que fugir de seus princípios consagrados:


** Ao contar uma história, nunca acrescente nada que não tenha sido apurado e verificado por seus próprios repórteres ou por repórteres de revistas, emissoras e jornais respeitados.


** Organize as redações de tal forma que os repórteres saibam que a apuração original deles tem precedência sobre as demais fontes de informação.


** Nunca engane seus leitores.


** Seja absolutamente transparente sobre seus métodos e motivações.


** Exerça a humildade mostrando cotidianamente que nessa profissão as pessoas são pagas para descobrir e não para saber.


** O que separa o jornalismo da propaganda, do divertimento, da ficção e da arte é a verificação criteriosa dos fatos, a busca honesta da verdade, do que realmente aconteceu no caso que se pretende narrar aos leitores.


Ricardo Gandour – Numa perspectiva extremamente otimista, acredito que todos sairemos melhores deste período.