Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Eles não têm assessores de imprensa

O Rio do lado sem beira desceu à sua maneira – como diz a canção – e enfrentou o Batalhão de Choque na sede do Comando Militar do Leste, ao lado da Central do Brasil, em seguida ao enterro de três jovens moradores do Morro da Providência, ocupado desde dezembro do ano passado por forças do Exército, alegadamente para dar apoio a obras de reforma de centenas de casas da comunidade.


Segundo o noticiário, os rapazes voltavam de um baile funk quando foram abordados por militares, que os revistaram; presos por desacato e levados a um quartel, acabaram torturados e assassinados, supostamente depois de terem sido entregues por esses mesmos militares a traficantes de um morro próximo, dominado por uma facção rival. Seus corpos foram encontrados num lixão, num município da Baixada Fluminense.


Assim que a notícia correu, no sábado (14/6) à noite, a revolta explodiu: vários ônibus foram incendiados ou depredados nas imediações da favela, os operários que trabalhavam nas obras decidiram parar em sinal de protesto, moradores tentaram bloquear o viaduto que passa ao lado do morro e é vital para o trânsito na cidade.


O ápice foi na segunda-feira (16): primeiro a tensão no enterro, depois a passeata até a sede do Comando, finalmente o confronto. Bombas de efeito moral, spray de pimenta, tiros de balas de borracha, cães e golpes de cassetete contra as pedras e o alarido da multidão enfurecida, que promovia estragos a esmo em meio a outra multidão apavorada, que tentava fugir daquilo e voltar para casa.


Cidadãos inteiramente loucos com carradas de razão – exatamente como diz a canção.


Perguntas tardias


O Globo deu amplo destaque ao conflito e relacionou na primeira página dez ‘perguntas sem resposta’, que poderiam ser resumidas essencialmente em duas: por que o Exército Brasileiro foi mobilizado para um trabalho que inevitavelmente incluiria a função de polícia se não há deliberação do Congresso Nacional nesse sentido? Por que o Exército Brasileiro foi destacado para atuar num reduto eleitoral particularmente vistoso de um senador evangélico de grande influência, candidato a prefeito e colega de partido do vice-presidente da República? Por quê? Porque…


Por que O Globo apenas agora se lembra de fazer essas perguntas? Por que não as fez há seis meses, quando começou a ocupação do morro? Naquela época – um 13 de dezembro, data marcante na memória nacional – o jornal registrava singelamente que ‘as obras do projeto Cimento Social, uma parceira do Ministério das Cidades com o Exército, começam hoje no Morro da Providência, no Centro. A proposta é reformar as fachadas e os telhados de 780 casas da favela’. (Na verdade, 782, pois para um projeto como esse é preciso mesmo contar nos dedos e anotar bem o nome dos beneficiários). No dia seguinte, no mesmo tom, informava que o ‘Exército ocupa vários pontos do Morro da Providência’.


O Exército sobe o morro, não encontra qualquer resistência, e ninguém desconfia de nada? Ainda mais que naquele mesmo morro, cerca de um ano e meio antes, no episódio ainda hoje nebuloso do sumiço de armas de um quartel, houve intensa troca de tiros com os traficantes locais, resultando inclusive na morte de um rapaz, no meio do fogo cruzado a que se costuma dar o nome de ‘bala perdida’.


Só quatro meses depois, em 6 de abril, manchete do diário Extra investiria na explicação para tamanha calmaria: ‘Tráfico propôs trégua para Exército trabalhar em paz na Providência’. (Se a iniciativa partiu mesmo dessa entidade chamada ‘tráfico’, ou se teve outra origem, é coisa de menor importância agora). O Globo, um mês e meio antes (em 20 de fevereiro), preferiu acreditar na fantasia de que ‘Providência não tem mais venda de droga’. A informação era atribuída ao Exército e repetia matéria publicada na véspera pelo jornal O Dia, que afirmava: ‘Exército expulsou tráfico do Morro da Providência’, e que abria de maneira triunfal e inequívoca:




‘A presença diária de 200 homens do Exército no Morro da Providência, no centro da cidade do Rio, foi suficiente para expulsar os traficantes que dominavam a comunidade. O que restou do grupo se resume a poucas pichações nas paredes das casas ou às iniciais da facção gravadas nas escadarias. A expulsão dos criminosos é reconhecida pelos militares e pode ser constatada em uma caminhada pelos becos da comunidade, que não apresentam olheiros ou soldados armados do tráfico.’


Surpreendentemente, menos de um mês depois, em 11 de março, a Folha de S.Paulo faz a gentileza de informar exatamente o contrário: ‘Exército admite que tráfico ainda atua em morro ocupado por militares no Rio’. E aponta a origem do equívoco:




‘O Exército admitiu pela primeira vez que o tráfico ainda opera no morro da Providência, na Gamboa (zona portuária do Rio), ocupado há quase três meses pelos militares para a realização de reformas em casas da população de baixa renda. Em 18 de fevereiro, o Comando Militar do Leste levou a imprensa à favela para anunciar publicamente que havia expulsado os traficantes.’ [Destaque meu.]


O Comando Militar do Leste levou a imprensa à favela para dar uma notícia do seu interesse e a imprensa acreditou. E fez o alarde correspondente à suposta grande vitória do Bem contra o Mal.


Da mesma forma, a imprensa achou perfeitamente normal algo que estranha agora: o acordo do Ministério das Cidades com o Exército para a tal obra do ‘Cimento Social’ que privilegiava escandalosamente um projeto eleitoreiro do ‘bispo’ candidato a prefeito do Rio de Janeiro, à revelia do debate público que obrigatoriamente precisaria ser travado para a adoção de uma medida como essa.


É preciso estar atento e forte…


Ler jornal, ouvir o noticiário radiofônico, assistir a telejornais, são tarefas muito difíceis. É preciso estar atento e forte – como diz outra canção, bem mais antiga. E não conseguimos estar atentos o tempo todo. Tendemos a acreditar no que se publica, mesmo porque a principal arma de um jornal é a sua credibilidade, e além disso o hábito de ler jornal, ouvir rádio, assistir ao telejornal, está incorporado ao nosso cotidiano. Por isso tantas coisas nos escapam, e por isso também momentos de grande comoção como este servem para alertar-nos para a necessidade de um recuo que nos leve a pensar em como chegamos até aqui.


Então, tudo se encaixa: a mal disfarçada campanha da mídia em geral em favor da atuação do Exército no combate à criminalidade não poderia mesmo permitir críticas ou questionamentos diante de uma medida perfeitamente adequada a esse propósito. E as várias assessorias de imprensa – do governo, do Exército, do candidato – se aproveitam disso para ‘plantar’ as informações de seu interesse.


Até que três rapazes um pouco mais abusados, ou um pouco menos dóceis – quem sabe ovelhas desgarradas do rebanho do ‘pastor’ –, ousam desafiar o poder da farda e conhecem um fim trágico que detona a revolta.


Porém a ‘comunidade’ não tem assessores. Reage à sua maneira: as mães envelhecidas e desdentadas no desespero da perda dos filhos, os amigos e vizinhos queimando ônibus e quebrando o que vêem pela frente ou empunhando cartazes improvisados, frases precárias escritas num frágil pilot sobre cartolina com uma tarja negra à volta em sinal de luto. Ou, ainda, apela a gestos tão simbólicos como a retirada da bandeira nacional hasteada no alto do morro pela força armada, ou a exibição de um boneco de Judas fardado, pendurado do lado de fora de uma casa sem reboco, num ponto mais visível do morro.


É tudo, e é pouco, porque sempre haverá quem diga que estão a serviço dos traficantes, o que é a forma mais óbvia de deslegitimar o protesto e simplificar a questão. Afinal, dois dos jovens assassinados tinham ‘passagem pela polícia’ – quase uma regra para quem nasceu e vive na periferia social –, de modo que estavam marcados como a flor de lis no corpo dos bandidos de outrora. O outro tinha ficha limpa, mas era questão de tempo.


Agora os jornais começam a fazer perguntas, agora aparece um documento confidencial do Exército informando que a presença dos militares no morro era mesmo para policiar a área, agora os jornalistas fazem as contas e constatam que a reforma das casas custará mais de 60% do preço de uma casa nova. Mas agora é tarde.


A tragédia em ‘alta definição’


A força das cenas do conflito, a intensidade do drama, a aberração e o grau de barbárie que a situação expõe, nada disso foi capaz de mudar a abertura do Jornal Nacional de segunda-feira (16/6), que destacou o fato na escalada mas começou com a matéria prevista: uma reportagem sobre o câncer de mama, anunciada pela sorridente musa do noticiário, que retornava ao trabalho depois de dez dias longe das câmeras, justamente para a realização de uma pequena cirurgia nos seios, preventiva de um mal maior.


No encerramento, a mesma musa sorridente anunciava a boa nova: o início da transmissão digital da emissora no Rio de Janeiro, dali a alguns minutos, na novela das nove.


De fato é reconfortante saber que, em breve, a noite da grande fogueira desvairada poderá ser apreciada em ‘alta definição’.


 


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Rendition no morroLuiz Weis


 

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Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)