Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Entre areias das Arábias e falsos voos

Difícil não evocar o repórter investigativo Seymour Hersh diante do noticiário sobre a inesperada conquista da cidade iraquiana de Ramadi pelos jihadistas do Estado Islâmico, os nefandos hunos do século XXI.

Hersh, como se sabe, é o autor da narrativa sobre a captura e morte de Osama Bin Laden que desconstrói o cerne da versão oficial da Casa Branca e que, segundo ele, foi aceita sem reservas pela grande imprensa de seu país.

Crítico impiedoso da letargia que teria contaminado a mídia americana desde os ataques terroristas do 11 de Setembro, Hersh costuma repetir que as coisas têm piorado. “O governo Obama mente o tempo todo”, insiste o veterano repórter conhecido por manter distância de todos os ocupantes da Casa Branca.

Semana passada, tanto o “New York Times” quanto o “Washington Post” citaram “fontes oficiais da ativa e da reserva” para noticiar que os combatentes do Estado Islâmico se aproveitaram de uma colossal tempestade de areia para avançar sobre a cobiçada Ramadi. Calculando que a tempestade paralisaria o poderio aéreo dos bombardeios americanos a serviço do Iraque, os jihadistas teriam primeiro detonado mais de 30 carros-bomba em locais estratégicos para depois conquistar a cidade com levas e mais levas de combatentes.

Sempre segundo essas “fontes oficiais”, quando a tenebrosa tempestade se dissipou e os bombardeios poderiam ser iniciados, já era tarde demais: qualquer ataque aéreo aos invasores resultaria em perdas colaterais imprevisíveis numa cidade de meio milhão de habitantes.

Tempestades de areia nas Arábias camuflando jihadistas envoltos em vestes pretas rendem excelente narrativa. Pena que a tempestade teve de ser rebaixada a mera “neblina e um pouco de poeira, com zero de impacto sobre nossas operações aéreas” dois dias depois. Isso porque o Pentágono achou prudente confirmar que houve, sim, bombardeios aliados contra os jihadistas durante o assalto a Ramadi. Foram 15, apenas eles não alteraram o quadro.

Para justificar a preocupante debandada das tropas iraquianas que deixaram o caminho livre para os combatentes do Estado Islâmico, outro porta-voz do Pentágono teve de apresentar teoria alternativa. O comando iraquiano, em “decisão unilateral”, recuara por temer que não receberia apoio aéreo devido às condições do tempo. “As Forças de Segurança do Iraque não foram enxotadas da cidade, elas saíram por vontade própria, para uma posição mais defensável”, complementou o general Martin Dempsey, chefe do Estado-Maior Conjunto.

Esse é apenas um minúsculo exemplo do desencontro de notícias oficiais sobre um mesmo episódio que acabam reproduzidas sem investigação própria por conceituados jornais. É o que tem azedado a opinião de Seymour Hersh sobre o comando do jornalismo em seu país e a atrair-lhe críticas dos pares sempre que a ocasião permite.

Depois da publicação de sua apuração sobre a morte de Bin Laden, raríssimos foram os jornalistas que procuraram investigar o que ela contém de valioso ou refutável. Em compensação, não faltaram opiniões condescendentes e reducionistas sobre o próprio Hersh: o repórter estaria em busca da notoriedade perdida, ele fora vítima de sua conspiromania, acreditou ser possível manter em segredo uma versão oficial falsa que envolveria centenas de pessoas.

À primeira vista, pode parecer difícil. Mas, como lembrou o jornalista Trevor Trimm, diretor-executivo da Fundação pela Liberdade de Imprensa, o programa metadata da National Security Agency (NSA), revelado por Edward Snowden, era do conhecimento de mil ou dez mil? E permaneceu secreto durante sete anos até ser exposto por um funcionário que sequer da casa era.

No caso, pode-se argumentar ser ofício do NSA manter o bico calado, pois seus funcionários são todos do ramo dos serviços de informações.

Tome-se então um caso menos conhecido no Brasil, envolvendo outro ocupante da Casa Branca e outra guerra, a do Vietnã. O presidente era Richard Nixon e o cabeça da operação sigilosa era seu assessor para assuntos de segurança nacional, Henry Kissinger. A época: março de 1969 a maio de 1970.

Pouco após a posse de Nixon, Kissinger e seu adido militar, Alexander Haig, convocaram um especialista em bombardeiros B-52 e montaram um sistema clandestino e paralelo para intensificar os bombardeios contra o Camboja, país vizinho do Vietnã visto pelos americanos como refúgio dos guerrilheiros vietnamitas.

A prestação de contas do uso de combustível, munição e peças sobressalentes da operação deveria ser feita de forma a enganar o Congresso. Kissinger propôs que os próprios pilotos das missões secretas não deveriam ser informados de que estavam bombardeando o país errado, mas foi desaconselhado. Em contrapartida, adotou-se um juramento de sigilo.

O protocolo estabelecido foi seguido à risca ao longo de meses, sem falhas. Um militar importado do Estado-Maior Conjunto sugeria pontos a serem bombardeados no Camboja e levava o mapa a Kissinger, que aprovava os alvos de seu interesse. As coordenadas eram enviadas a Saigon, um pombo-correio as transmitia a estações de rádio predeterminadas e até o último momento todas as etapas e localizações eram falsamente designadas como bombardeios em território vietnamita.

Somente na 25ª hora os dados eram alterados para espelhar os alvos reais no Camboja.

Ao término de cada missão, tudo era incinerado — mapas, relatórios de radar, mensagens, anotações, rascunhos, roteiros, listas. E uma papelada nova referente a um inexistente bombardeio ao Vietnã era elaborada.

Mais de uma centena de militares participaram da falsificação dessa versão oficial que o Congresso dos Estados Unidos só foi descobrir três anos depois. O historiador Greg Grandin, autor do aclamado “Fordlandia”, promete um completo mergulho nesse episódio na sua biografia de Kissinger aguardada para o segundo semestre.

Seymour Hersh foi um dos primeiros a alertar para a ponta da farsa cambojana.

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Dorrit Harazim é jornalista