Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Equívoco papal e parcimônia da mídia

Enquanto a repercussão do discurso do papa mereceu largos espaços na imprensa mundial, o mesmo não se verificou na mídia brasileira, afora acanhadas notícias. Talvez o fato de o Brasil abrigar a maior legião de católicos tenha pesado na balança. Por outro lado, o mesmo fator poderia servir para resultado oposto.

Exatamente por haver no Brasil maior concentração de seguidores é que a mídia não deveria ignorar a importância do acontecimento. O fato é que, de um modo geral, a imprensa preferiu a destacar a inesgotável baixaria que habita os sinistros redutos da política partidária, tema que, por sua vez, não parece mais ecoar nos eleitores, seja por absoluta cegueira, seja por acatada indiferença, dada a recorrência de escândalos.

Reconhecendo, pois, a timidez com que a imprensa local abordou o discurso do papa, vamos aqui explorá-lo, em respeito, quem sabe, a leitores que se possam ter sentido lesados no seu direito a maior cobertura.

O primeiro aspecto que, jornalisticamente, ofereceria rentável reflexão ao leitor residiria na rememoração de fato que esteve na mídia em meados de 2006, por conta de tensões criadas por um tablóide dinamarquês (e, posteriormente, reforçadas por outros veículos europeus), ao publicar as charges de Maomé, sobre que escrevi um artigo neste Obsevatório [ver “Os traços da insensatez”]. A questão, portanto, remeteria a algumas indagações, ainda mais por saber-se que o tal periódico dinamarquês tinha ligações com a chamada “ala católica de direita”. É estranho, pois, que, num contexto mundial tão sensível a acirramentos de conflitos de raízes religiosas, o maior representante da crença católica propicie renovado pretexto a reações violentas.

A julgar pelo noticiário dominante, as matérias publicadas no Brasil, ratificando a versão do Vaticano, tentaram fixar a idéia de que o papa fora alvo de mal-entendido, ao descontextualizar-se a citação por ele proferida em discurso público. Para começar, não foi publicada a íntegra do discurso, o que inviabiliza qualquer avaliação. De outro lado, que o Vaticano se defenda, com a alegação que quiser, é legítimo que assim o faça. Legítima, porém, não é a conduta jornalística em simplesmente reproduzir a explicação do Vaticano.

O que cabe ser pontuado, sob o aspecto jornalístico (desde que independente), é o caráter inoportuno da citação, seja em que contexto for. A crítica, portanto, é inevitável. Mais ainda, por saber-se que o atual papa, um dos preferidos interlocutores de Jürgen Habermas, é portador de um lastro intelectual superior ao de seu predecessor. Então, não poderia escapar à pontifícia astúcia a previsibilidade de desconfortos e conflitos.

O princípio da infalibilidade

Outro aspecto a que a imprensa brasileira, ingenuamente, se ateve diz respeito à possibilidade de retratação do papa. Aí já não se sabe se é ingenuidade real ou fingida. Para tanto, basta recordar que um dos atributos de que goza o papa é o princípio da infalibilidade. À luz da crença católica, o papa é escolhido pela vontade divina, representada nos votos dos cardeais. Assim, em nenhuma hipótese, o papa pode admitir haver cometido um erro, o que torna jornalisticamente a retratação mera peça de ficção.

Se não houve ignorância jornalística, houve intenção de iludir leitores, ao deixar de mencionar o princípio da infalibilidade. Principalmente a mídia brasileira demonstra incapacidade de lidar com questões que, no âmbito mundial, estão revestidas de tensão. Parece faltar-lhe maturidade crítica e analítica. Na ausência talvez de tais requisitos, outras matérias surgiram sobre as precauções de reforçada segurança, adotadas pelo Vaticano contra qualquer represália.

As notícias a respeito das preocupações das autoridades eclesiásticas tentaram passar a idéia da vitimização. Ora, de quem partiu o ato insensato ou estrategicamente infalível? Que autoridade islâmica ou judaica pronunciou (recente ou remotamente) discursos que indispusessem a maior autoridade católica? Que jornal judaico ou islâmico (recente ou remotamente), por iniciativa deliberada, publicou charges que pudessem produzir algum desconforto a autoridades católicas? Quando um jornal iraniano publicou, fê-lo como represália.

Não, a isenção crítica dá conta de que o encaminhamento político-religioso do atual papa, desde a posse, tem revelado tendências que em nada fortalecem a convivência harmoniosa entre diferentes culturas. É prudente que o Vaticano reavalie suas posições, sob pena de o mundo elevar a temperatura de seus conflitos. Quem se ancorar ao dito popular de que “às vezes, Deus escreve certo por linhas tortas” poderá perder para sempre o caminho das linhas retas. Deste modo, também é prudente que a imprensa se esforce por rumar na direção de linhas adequadas.

[Texto concluído às 15h16 de 17/9]

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)