Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Era da impostura, hora de verdades

Guerras, guerrilhas, terrorismo, ditaduras, massacres, recessão, violência urbana, corrupção desbragada, miséria – nos últimos 50 anos raras vezes tivemos um panorama mundial tão melancólico como o atual. Se antes luziam frestas de esperança, a atual galeria de pedestais vazios só agrava o desânimo.

A mentira, mãe de todas as desgraças, esconde-se atrás de cada conflito, móvel de todos os confrontos. Na história das guerras sempre houve uma falsidade primal, impostura nuclear. Por isso, a tarefa dos pacifistas não se resume a tapar trincheiras, travar gatilhos ou destruir armas. Antes de silenciar os tambores marciais, impõe-se desvendar as fraudes que os acionaram.

Foi o que fez o New York Times, em nova e ousada penitência pública quando na última quarta-feira em nota dos editores pediu desculpas aos leitores pelos erros de informação ‘durante o prelúdio da invasão do Iraque e nos estágios iniciais da ocupação’.

Embora sem o destaque e a extensão do mea-culpa motivado pelos embustes de Jayson Blair, a surpreendente expiação pública do jornalão americano tem imenso valor político. No momento em que grande parte da opinião pública americana está estarrecida, vexada e humilhada por todo o que acontece no Iraque, a confissão poderá ser decisiva pela sua capacidade de multiplicar-se no plano moral e político-eleitoral.

Embora a nota concentre-se nos aspectos profissionais e na falta de rigor para a apuração de informações – sobretudo na questão dos arsenais de armas de destruição em massa – o timing da publicação revela que além da preocupação com os procedimentos técnicos e a credibilidade do jornal, seus editores também alarmam-se com o processo de deterioração que tomou conta de um país ainda violentado pelas imagens de seus soldados – de ambos os sexos – abusando dos prisioneiros iraquianos.

Tesouros e lorotas

Se as agências de inteligência do governo foram as fontes das matérias levianas publicadas pelo NYTimes, o reconhecimento do erro embute grave acusação contra os informantes. Por isso, o jornal compromete-se a ‘continuar com reportagens agressivas destinadas a estabelecer o registro correto’. Mandou um aviso, algo vai mudar.

A mentira como assunto e as patranhas de Bush em particular dominam a pauta de debates dos EUA há mais de um ano. É piada, vexame e também inquietação. A descrença nas lideranças pode estender-se às instituições com prejuízos irreparáveis. Inclusive no tocante à confiabilidade de um processo eleitoral que sofreu inédito desgaste há quatro anos.

Despojado de ambições de protagonismo o jornalão, no entanto, parece engajado na tarefa de avisar a sociedade americana que é chegada a hora das verdades. O desabamento dos grandes impérios sempre coincide com o desvendamento das trapaças que os sustentaram.

Entre nós, estranhamente, a nova demonstração de humildade do NYTimes não chamou muita atenção. Compreensível: preferimos a arrogância e a onipotência, tantas demonstrações de falibilidade parecem provas de fraqueza. Na chamada grande imprensa houve até jornais que jogaram a informação no lixo. Consideraram que o leitor brasileiro está distante do debate sobre a mentira.

Enganaram-se: é crucial. O país inteiro implora por verdades, cansou do engenhoso sistema de empulhação que comanda há tanto tempo nosso processo político e converte os governantes – mesmo os bem intencionados – em incorrigíveis bravateiros.

Fomos à China, mas na volta não podemos esquecer de Marco Pólo, o primeiro a desvendar para o Ocidente os deslumbramentos do Oriente. Do périplo do famoso viajante, além dos tesouros, sobrou uma fabulosa coleção de lorotas.