Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Escravidão, um quentíssimo assunto frio

Trabalho escravo não dá cadeia no Brasil. Foi esta a manchete do Jornal do Brasil em 1º de maio, Dia do Trabalho. Foi a menos noticiosa, porque não contou propriamente uma novidade. Mas foi especialmente oportuna. No próximo domingo (13/5) a Lei Áurea completará 119 anos e a escravidão ainda rende matéria de atualidade na imprensa brasileira.

Cada um a seu modo, três dos maiores jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo puseram o Dia do Trabalho na matéria principal. O Globo destacou a festa na Bolívia, onde o presidente Evo Morales deveria ampliar as nacionalizações. O Estado de S.Paulo noticiou a decisão do governo brasileiro de transferir 10% do imposto sindical às centrais de trabalhadores.

Foram duas manchetes quentes, sobre assuntos polêmicos e com bastante importância para merecer editoriais. Seria mais fácil defendê-las, numa discussão de pauta, do que um alto de página com matéria sobre o trabalho escravo. Este assunto pode render matéria em qualquer dia – por que não em 13 de maio?

A política boliviana para o gás e o petróleo afeta a Petrobras, pode criar problemas para a economia brasileira e tem conseqüências para a diplomacia regional. A perspectiva de novas nacionalizações já havia rendido um atrito entre os presidentes Evo Morales e Luiz Inácio Lula da Silva em recente reunião de cúpula, na Venezuela.

Uma nova repartição do imposto sindical também vai muito além do noticiário rotineiro. Esse imposto – mais precisamente, contribuição – é uma das heranças da velha política do peleguismo. Sua mera extinção poderia favorecer transformações profundas no sindicalismo brasileiro. Sua substituição por algo semelhante, solução mais provável, mas ainda sem data para ocorrer, consolidará a condição dos sindicatos como apêndices do Estado. Com a inclusão das centrais sindicais entre os beneficiários dessa receita, ficará muito mais difícil qualquer mudança radical.

Ninguém condenado

Assuntos quentes como esses normalmente se impõem. Não há como rejeitá-los ou mesmo escondê-los em posição secundária, exceto por falha de cobertura. Mas a concentração nos temas quentes acaba resultando, com freqüência, no abandono de pautas objetivamente importantes – às vezes, mais importantes que aquelas privilegiadas no cotidiano.

Quem já cobriu eventos como a reunião anual do Fórum Econômico Mundial sabe disso. O repórter de Economia é em geral atraído pelas discussões sobre conjuntura ou sobre temas políticos e diplomáticos do momento. Cada reunião do Fórum tem dezenas de sessões concentradas em poucos dias. Muitas são dedicadas a assuntos de enorme importância objetiva, mas acabam atraindo muito menos atenção dos jornalistas, empenhados em cobrir discussões sobre economia mundial, emergência da China e da Índia, perspectiva dos juros nos Estados Unidos e assim por diante.

No Brasil, temas como a exploração do trabalho escravo ou semi-escravo são em geral postos de lado porque se pode cobri-los a qualquer momento. Em geral, só aparecem nos meios de comunicação quando há um fato novo, como o assassinato de fiscais do Ministério do Trabalho ou uma ação especialmente ruidosa da Polícia Federal. Fora dessas ocasiões, tudo se passa como se o problema não existisse ou fosse mero componente de uma paisagem percebida sem atenção no vai-e-vem do dia-a-dia.

Desde 2001, segundo o Jornal do Brasl, o Ministério do Trabaho libertou 21.296 trabalhadores encontrados em condições análogas à escravidão. A maior parte desse pessoal foi encontrado no campo, mas até agora nenhum proprietário foi condenado e encarcerado. Segundo autoridades e especialista, informa o jornal, o Poder Judiciário levou 11 anos para decidir qual das suas esferas tem competência para julgar os acusados de exploração de trabalho escravo.

Pauta ignorada

Haverá exagero naqueles números? Segundo líderes do setor rural, há muita acusação sem prova. Talvez tenham alguma razão. Mas a mera permanência de tanta obscuridade em torno do assunto já é bastante escandalosa.

Há quem peça o endurecimento das leis contra os exploradores do trabalho escravo. É preciso prender os culpados e impedi-los de fazer negócios, disse o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Manoel José dos Santos, citado pelo JB.

Mas também essa discussão está fora de foco. O jornal mostrou uma porção de impasses, mas faltou lembrar dois detalhes: 1) não tem sentido tratar a escravidão como problema trabalhista; 2) o Código Penal, no artigo 149, atribui pena de reclusão de dois a oito anos a quem for condenado pelo crime de ‘reduzir alguém a condição análoga à de escravo’.

Pena de prisão, portanto, já existe. Por que não é aplicada? Seria este o início de uma boa discussão, mas a imprensa, mesmo quando trata do trabalho escravo, em geral ignora esse ponto ou o deixa em segundo plano.

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Jornalista