Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Explicação estético-sociológica para o “verão de fogo”

A “Teoria dos encapuchados”, de Toni García, foi publicada no jornal El País(11/08) para explicar as especificidades dos distúrbios nas ruas de Londres em agosto de 2011. É um esforço no sentido de se construir uma “explicação estético-sociológica” para o fenômeno do “verão de fogo” inglês. Uma tentativa temporária de entender os terríveis conflitos urbanos e saques que ocorreram naquela cidade este mês.

Identificando as tendências do vestuário dos jovens saqueadores de Londres, García nos mostra que a turma só usava roupas e acessórios de marcas caras e famosas. E que o capuz, se foi a marca da revolta, na realidade o foi mais por razões práticas: esconder o rosto de quem participa em um crime. O Blackberry na mão também fez parte deste novo look de um tipo de que ainda desafia a polícia, a imprensa e o conhecimento acumulado sobre as gangues e subculturas envolvidas neste tipo de conflitos, em Londres:

“É um caso curioso que rompe qualquer tentativa de interpretação sociológica do fenômeno: portam smartphones, jeans caros (dos Evisu japoneses ao Levi´s vintage), gorros New Era e tênis caros. Por isso parece paradoxal para muitos ingleses das ruas a relação que alguns pretendem fazer entre pobreza e guerrilha urbana, como se estivessem intimamente conectadas.”

A teoria de García é criativa e certeira. Faz parte da cobertura excelente que El País fez dos distúrbios londrinos em 2011. O jovem periódico espanhol fez a melhor cobertura de imprensa sobre os tumultos. Melhor que a inglesa e americana, arruinadas pelo politicamente correto e permeadas por uma estreiteza da mente que associava cegamente revolta e pobreza, diversidade racial e violência automática. Como o Wall Street Jornal, que anotou o seguinte:

“Em um período de 48 horas, a violência espalhou-se a esmo através de Londres, principalmente através de áreas mestiças e `economicamente desafiadas´, que têm sido inundadas por desemprego e tensões com a polícia.”

Livrando-se da camisa de força

Economicamente desafiadas? Onde foram parar os pobres? O uso de expressões impregnadas pelo politicamente correto só depaupera a descrição de uma paisagem social diversificada. No dia 8 de agosto, El Paísnoticiava o amplo uso que os grupos de jovens arruaceiros faziam do Blackberry, que contém um mensageiro gratuito que não pode ser tracejado pela polícia. O Ofcomcomprovou a febre pelos smartphones em geral, entre os jovens. O Blackberry é um smartphone que tem um comunicador gratuito que não pode ser rastreado e foi escolhido por isso pelos encapuchados de Londres para organizar os ataques e saques. As redes sociais estavam vigiadas pelo Ofcom e a turba de saqueadores encapuchados sabia disso.

Por isso, a cobertura de El País foi tão importante: mostrou que não há explicação fácil, quanto à identificação das origens de quem realmente participou dos saques. Um aparelho como esse não custa pouco dinheiro (assim como algumas roupas e acessórios dos jovens amotinados). O Blackberry é fabricado pela RIM(Researsh in Motion), que estava em má situação nos mercados de smartphones, segundo a revista All Things Digitaldo início do corrente mês. Sua única vantagem, comparado com o Android e o iPhone, é seu comunicador gratuito e à prova de rastreamento. Seu amplo uso durante os conflitos criou o que El País chamou de “a rede social na sombra“, que alimentou as chamas da revolta.

No dia 8, o jornal fez uma cronologiade 30 anos de conflitos urbanos na Inglaterra: desde abril de 1980, até 2010 – o que rompe com a ideia de que um conflito deste tipo não ocorre na ilha há muitos anos. Outra reportagemdo periódico, no dia 10, elegeu a canção da revolta: “London Calling”, do The Clash, que, segundo o jornalista Fernando Navarro, evocava os dias da consciência punk, formada nos dias de tédio e desespero dos filhos dos operários ingleses – desempregados e desajustados – que assistiam em horror ao desmonte das estruturas trabalhistas e sindicalistas pelo governo de Margaret Thatcher:

“Como que safando-se de sua camisa de força, a canção tomou em si mesma todo seu significado nas ruas, onde a raiva e o desencanto social transformaram-se em violência e distúrbios.”

O fundo cultural da notícia

Ao estabelecer um paralelo entre a Inglaterra do final dos anos 1970 e os dias de hoje, Navarro nos descreve uma cena em que, como hoje, “uma boa parte da sociedade se achava fortemente golpeada pela crise econômica dentro de um ambiente de marginalização e discriminação”.

El País fez uma boa cobertura dos distúrbios do “verão de fogo” inglês porque reforçou o fundo cultural da revolta. A redação soube explorar e expandir este fundo, estendendo-o por vários cadernos, seções e blogs do jornal. O resultado final foi uma grande quantidade de material de boa qualidade, abordado pelas perspectivas mais variadas.

Ao escolher reforçar o fundo cultural da notícia para explicar os distúrbios de 2011 na Inglaterra, o periódico deixou a compreensão dos fatos bem mais fácil para o leitor. É o que se espera de um bom jornal, no fim das contas.

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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]