Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Falta tirar a radiografia do furo

Nos romances policiais clássicos, o detetive-mestre dava a fórmula para desvendar o mais misterioso dos crimes: ‘Cherchez la femme’. Procurem a mulher.

Nos filmes que glorificavam o FBI, o calejado investigador ensinava como apanhar os culpados de maracutaias no governo: ‘Follow the money trail’. Siga o rastro do dinheiro.

Já aos interessados em saber como a revista Época, das Organizações Globo, conseguiu o vídeo em que o então presidente da Loterj, Waldomiro Diniz, amigo, protegido e futuro assessor do ministro da Casa Civil José Dirceu, achaca o bicheiro Carlos ‘Cachoeira’ Augusto Ramos, em 2002, talvez seja o caso de aconselhar que se perguntem, à maneira dos romanos: ‘Cui podest?’ Quem ganha com isso?

É da maior importância para quem produz e quem consome notícia conhecer a inside story do furo – como, por que e para que a fita de Cachoeira, mais a imagem de Diniz, segurando um pacote, captada pelas câmaras do aeroporto de Brasília, foram parar nas mãos do repórter especial Andrei Meireles e do chefe da sucursal da revista em Brasília, Gustavo Krieger.

Porque pode ajudar a reconstituir, nesse episódio inaugural de ‘jornalismo fiteiro’ da era Lula, os enlaces, quase sempre mantidos na penumbra, entre políticos, autoridades (no caso, procuradores da República) e jornalistas.

Dessa missa, nem a maioria dos profissionais, muito menos o público, conhecem a metade, apesar do que foi possível refazer do trajeto percorrido pelas denúncias de escândalos que renderam manchetes às mancheias nos anos Fernando Henrique.


 


Cálculos de conveniência

Meireles e Krieger fizeram aquilo para o que são pagos. (O melhor de tudo foi a entrevista – na quinta-feira à noite, quando a revista já entrava em trabalho de parto – em que o repórter soterra Waldomiro sob os escombros dos seus desmentidos.) Mas, salvo prova em contrário, os outros fizeram o que mandaram os seus cálculos de conveniência.

A história aparente é a de que o senador tucano Antero Paes de Barros recebeu a fita sem saber quem a mandou e há cerca de 15 ou 20 dias encaminhou-a ao Ministério Público Federal.

Por que o mato-grossense Antero, não está claro. Os beneficiários da extorsão, mencionados no vídeo e confirmados por Waldomiro à Época, eram duas candidatas ao governo do Rio (Benedita da Silva e Rosinha Garotinho, a primeira do PT, a segunda do PSB) e o candidato petista ao governo do Distrito Federal, Geraldo Magela.

Tucano por tucano, por que não destinar o material ao líder do partido no Senado, Arthur Virgílio, ou ao seu homólogo na Câmara, Jutahy Júnior? Mas passemos.

Do Ministério Público, ao que se supõe, o vídeo seguiu para a Época, que teve o indispensável cuidado de checar a sua integridade com o perito Ricardo Molina, da Unicamp, antes de usá-la para encostar Waldomiro à parede e sair com a capa ‘Dinheiro sujo’.

No sábado, quando a imprensa diária deu o escândalo, o Globo, no pé da principal matéria sobre o assunto, remeteu o leitor ao Globo Online, com a chamada ‘Revista Época explica como foi feita a denúncia’.

O que o Globo Online trazia era a entrevista de 13m42s que Gustavo Krieger dera na manhã do dia anterior à rádio CBN – também do Sistema Globo. Nela, o jornalista informa, sem entrar em detalhes, que a Época ‘estava perseguindo esta história há muito tempo’, explica por que Cachoeira é um ‘bicheiro moderno’ e conta que o Ministério Público, na investigação sobre as ligações de Waldomiro com o bicho e o bingo, já tinha tomado dois depoimentos. ‘O que mais possa estar por trás disso’, termina Krieger, ‘o Ministério Público trata de apurar.’

Não é bem uma explicação de ‘como foi feita a denúncia’ – e, tecnicamente, nada obriga a Época a mostrar o pau com que matou a cobra.

Enquanto isso, a começar do presidente do partido, José Genoíno, os petistas tratavam de difundir a versão de que foi o ex-candidato tucano ao Planalto, José Serra, quem acionou os motores da denúncia contra um até então inquilino do 4º andar do Planalto, que já dividiu casa com o ministro Dirceu. (Segundo o colunista Ancelmo Gois, do Globo, Waldomiro Diniz foi ainda o ‘homem forte’ da malsucedida campanha de Dirceu pelo governo paulista, em 1994).

No Rio, antes da festa dos 24 anos do PT, Genoíno falou em ‘resquício do tipo de guerra da campanha eleitoral de 2002’ e que era importante o deputado Jutahy esclarecer ‘se essa investigação, essa escuta sobre o Waldomiro, se isso não estava naquele clima de disputa eleitoral do candidato dele, no caso o José Serra’.

A julgar pelo que deu nos jornais, não houve um único repórter que considerasse importante pedir ao ex-deputado Genoíno que explicasse o que ele queria exatamente dizer com isso. Mais uma vez, passemos.

Ocorre que, no domingo, numa entrevista de meia página a Mariângela Galluci e Demétrio Weber, do Estado de S.Paulo, o procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, revelou, espantosamente, que só na sexta-feira, ‘pela minha assessora de imprensa’, soube que Waldomiro Diniz estava sendo investigado.

Logo adiante, quando os repórteres falam em ‘dr. Santoro’, Fonteles admite que ‘tinha detectado’ que o subprocurador José Roberto Santoro – a quem ele teria dito que agira incorretamente ao não informá-lo ‘da gravidade desse fato’ – era um dos dois membros do Ministério Público procurados pelo senador Paes de Barros com o vídeo da conversa entre Waldomiro e Cachoeira. O outro era o procurador Marcelo Serra Azul.

No mesmo domingo, matéria do repórter Kennedy Alencar, da Folha, termina com estas palavras:

‘O Planalto tem divulgado informalmente que o senador Antero Paes de Barros foi visto saindo altas horas da noite da casa de José Roberto Santoro, subprocurador-geral da República e figura do Ministério Público com boas relações com Serra e o PSDB.’

No governo Fernando Henrique, a imprensa não ousou apurar como o procurador Luiz Francisco de Souza, entre outros, aproveitou-se do imperdoável costume de jornais e revistas de atirar primeiro e perguntar depois, para plantar ‘denúncias’ e ‘suspeitas’ contra o secretário particular do presidente, Eduardo Jorge Caldas Pereira, e colher matéria-prima para investigações – que até agora deram em nada. Sobre o assunto, há depoimentos, um deles publicado em 2002, neste Observatório, do jornalista Rui Nogueira [veja remissão abaixo], mas não reportagens.

(Aliás, dá para ouvir, do Oiapoque ao Chuí, os rojões que ele anda soltando desde sexta-feira.)

Waldomiro é outra coisa. Ele foi apanhado em ‘flagrante delito’, como escreveu a colunista do Estado e Jornal do Brasil, Dora Kramer. Mas, da perspectiva do jornalismo, a história do vídeo gravado por um bicheiro que pousou na capa de um semanário de circulação nacional não é outra coisa.

Quando a oposição quer ferrar com o governo, como é do jogo; quando os procuradores estão em guerra com o ‘capitão do time’ de Lula, José Dirceu, desde que ele os desancou pela insistência do Ministério Público paulista em negar que foi crime comum a morte do então prefeito petista de Santo André, Celso Daniel; quando o homem de Dirceu no Congresso era também o principal lobista dos chefões do bingo no governo (que querem legalizar, além da tômbola, as máquinas caça-níqueis); quando um desses ‘bicheiros modernos’ é achacado sem receber nada em troca, como parece – ir atrás da radiografia de uma reportagem que envolve tudo isso, e decerto mais, deveria ser pauta obrigatória em qualquer redação séria. Com todo o respeito pelo furo da Época e pelo seu direito de calar sobre os bastidores da notícia.