Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Folha de S. Paulo

JORNALISMO & DEMOCRACIA
Roberto Romano

A escalada contra a imprensa

‘A CIDADANIA brasileira, cansada de lutar contra os desvios do Executivo e do Legislativo, hoje testemunha a instalação do arbítrio em várias ações de magistrados. Alguns juízes e promotores extrapolam os legítimos limites de seu múnus, desprezam os contribuintes e decidem o que as ‘pessoas comuns’ podem ler, ver, ouvir. As desculpas para a censura enunciam a defesa dos costumes, a luta contra a corrupção ou normas emanadas do próprio Judiciário. Assim, magistrados assumem o papel de legislar.

Seria importante rever os momentos inaugurais do Estado moderno para intuir o desvio que se evidencia no Brasil, sobretudo nos atentados à livre imprensa. Os juízes, afirma Bacon (‘Of judicature’), ‘devem recordar que seu ofício é ‘jus dicere’, e não ‘jus dare’. Interpretar a lei, e não legislar. O dever do juiz é suprimir a força e a fraude, pois a força é mais perniciosa quando aberta, e a fraude, quando oculta e disfarçada. Os juízes devem se acautelar contra as construções sistemáticas e inferências, pois não existe tortura pior do que a tortura das leis. (…)

Tudo o que estiver além disso é demasiado e procede da glória, do comichão de falar, da impaciência em ouvir, da memória curta ou da falta de atenção’. A escalada rumo ao arbítrio de algumas togas não é de ontem. Ela se une aos atos de promotores que, por excesso de zelo ou desejo de potência, reivindicam para si mesmos a tutela da cidadania.

Em 2005, o procurador Bruno Acioli tenta quebrar o sigilo jornalístico, sob o pretexto de combate à corrupção. Neste espaço (3/12/05), ele transforma um mandamento constitucional (‘A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição’, art. 220) em via para flexibilizar o sigilo jornalístico.

Evoca o autor o caráter sistemático das garantias democráticas: ‘(…) a liberdade de manifestação de pensamento, o direito à informação e o sigilo de fonte estão intimamente ligados. Conseqüência disso é que não haverá que se falar em manutenção do sigilo de fonte todas as vezes em que esse for prescindível ao exercício profissional ou sempre que o indigitado sigilo deixar de atender a sua função social, a saber: garantir o acesso de todos à informação e à liberdade de manifestação de pensamento’. Soberano, diz um jurista totalitário, é quem decide sobre a exceção. Perguntemos: quem decide, como decide, por que alguém decide ser a quebra do sigilo prescindível ‘ao exercício profissional’? Quem decide que o ‘indigitado’ sigilo perdeu a sua função social? O procurador e o juiz?

Ficamos sabendo que existem mentes superiores que decidem sobre a suspensão de direitos, pois o sigilo implica um complexo de direitos que o sustenta. ‘Inexistem direito ou garantia absolutos. Nem mesmo o direito à vida é ilimitado, haja vista a possibilidade de aplicação da pena de morte na hipótese de guerra’ (Acioli). O direito à vida é ilimitado. Quem o nega abre as portas para as violações resultantes. Apelar para a guerra para suspender direitos, quando não existe guerra, é antecipar algo sinistro.

E algo sinistro surgiu como fruto da beligerância contra a imprensa. Revistas e jornais têm sido censurados com base em normas cuja magnitude não é a da própria Constituição. Nas multas à Folha e à revista ‘Veja’, por entrevistas com candidatos à Prefeitura de São Paulo, as sanções se deviam a uma ordem que, reconhecida a sua inconveniência, foi modificada por quem de direito. No caso da censura imposta ao ‘Jornal da Tarde’, a questão é ainda mais complexa.

Voltemos às notas de Bacon, um instaurador do Estado moderno: antes de sentenciar (antes mesmo de denunciar, no caso da Promotoria), a prudência recomenda ouvir os vários segmentos e o próprio autor que editou a norma. Esta, como reconhece o ilustre ministro Ayres Britto, vai contra a democracia, pois o núcleo do regime é o povo, único soberano.

O titular da ‘maiestas’ deve saber, antes de votar, o que pensam e pretendem os candidatos à representação. Discutir plataformas políticas é o mais comezinho dever dos que afirmam servir ao povo. Proibir tal prerrogativa é subverter a essência democrática. E, para entender a liberdade de imprensa no regime democrático, é preciso captar o significado da própria liberdade política.

No verbete ‘liberdade’ da ‘Enciclopédia’ elaborada por Diderot, o dicionário que mais contribuiu para a civilização moderna, o essencial da liberdade está ‘na inteligência que envolve um conhecimento distinto do objeto da deliberação’. Exatamente o que proíbe a norma, agora adaptada. Não seria preciso tanta celeuma. A imprensa apenas segue seu alvo: denunciar a força e a fraude, sobretudo quando elas são ocultas ou disfarçadas. Bastaria, portanto, prudência, respeito pelos cidadãos e por seus direitos. Bastaria que alguns juízes soubessem que sua missão é ‘jus dicere’, não ‘jus dare’.

ROBERTO ROMANO , 62, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de, entre outras obras, ‘Moral e Ciência – A Monstruosidade no Século XVIII’.’

 

 

ELEIÇÕES NOS EUA
Eliane Cantanhêde

Obama, ‘la ola’

‘BRASÍLIA – A adesão, o discurso e o abraço sorridente de Hillary Clinton, estampados nos jornais de todo o mundo ontem, podem atrair para o democrata Barack Obama o voto hispânico, que deve chegar a decisivos 7% ou 8% do total. Hillary era a preferida da população latina, que somava 44,3 milhões (15%) dos habitantes em 2006 e é estimada atualmente em 46 milhões, com 18,2 milhões inscritos para votar. A expectativa é que metade -em torno de 9,2 milhões- realmente deposite suas cédulas nas urnas.

Trata-se de um potencial respeitável, pois as últimas eleições tiveram resultados muito apertados, de até 1% de diferença. Com 7% a 8% do eleitorado, os latinos -aí incluídos brasileiros e seus descendentes- podem definir a eleição para um lado ou para o outro. Dos 13 Estados indecisos, cinco com forte presença latina são alvos obrigatórios de Obama e de McCain: Flórida, Nevada, Arizona, Colorado e Novo México.

Tradicionalmente, os latinos tendem para os democratas, mas há três novos fatores: 1) Bush é republicano, mas fala espanhol, aproximou-se da comunidade e atraiu 34% dos votos latinos em 2000 e 40% em 2004; 2) McCain é senador pelo Arizona, com boa presença latina, e foi um dos autores da lei de flexibilização da imigração (que não passou no Congresso); 3) os latinos queriam Hillary, não Obama.

Há dúvidas sobre a migração automática dos votos dela para ele. Como há dúvidas quanto a uma simbiose de votos latinos e negros. Juntos, eles dividem as camadas mais pobres e menos escolarizadas, disputando empregos, moradias e vagas nas escolas. Há quem avalie que são ‘concorrentes’, e os latinos não votariam em massa num negro.

De outro lado, há os que apostam que eles convivem de perto, se identificam como minorias e votarão, sim, em Obama. Principalmente porque ele é a ‘onda’ da vez, e onda leva tudo de roldão.’

 

 

Sérgio Dávila

Dukakis perdeu para Bush pai após comercial

‘Uma jovem mãe, com um bebezinho no colo, conversa com a câmera. ‘Olá, John McCain. Este é Alex, meu primeiro filho.

Até agora, seus talentos incluem colocar tudo o que vê na boca e perseguir nosso cachorro. Isso e fazer meu coração disparar a cada vez que eu olho para ele. Então, John McCain, quando você diz que poderia deixar as tropas no Iraque por cem anos, você estaria contando com o Alex? Porque, se estava, ele não está à disposição.’

Corta.

Uma câmera mostra uma parte pobre de Chicago. A locutora relembra casos de jovens mortos em brigas de gangue em 2001 na cidade. ‘Naquele ano, um jovem senador estadual chamado Barack Obama votou contra aplicar a pena de morte contra membros de gangues. Quando chegou a hora de ser duro, Obama preferiu ser fraco. A pergunta é: podemos acreditar que um homem tão fraco na guerra contra gangues será forte na guerra ao terror?’

O primeiro anúncio está no ar nacionalmente na TV aberta e é bancado pelo grupo progressista MoveOn, que apóia o democrata Barack Obama. O segundo está no ar em algumas emissoras de TV paga e foi feito pelo grupo conservador ExposeObama, do produtor de comerciais políticos Floyd Brown, que apóia o senador republicano John McCain.

Ambos os candidatos à sucessão de George W. Bush têm dito que esta será uma campanha limpa, em que ataques pessoais e anúncios negativos não terão lugar. ‘Nós estamos vivendo talvez a campanha presidencial mais positiva de nossa geração’, disse Obama em entrevista exibida pelo canal pago Fox Business na quinta-feira, ecoando seu oponente.

Pode ser verdade. Mas, se os dois se dão ao luxo de não colocar os pés na lama, é por conta de grupos como o MoveOn e o ExposeObama, agremiações que não são ligadas diretamente às campanhas, mas arrecadam, gastam dinheiro e trabalham em benefício dos candidatos com os quais se identificam. São os chamados PACs e 527 [leia glossário nesta página], que seguem regras diferentes, mas têm objetivo igual: fazer o trabalho sujo por eles.

Distorções

Ao sair em defesa de seus candidatos na disputa pela eleição presidencial de 4 de novembro, essas pistolas de aluguel costumam tomar liberdade com os fatos. McCain não disse que manteria os soldados no Iraque por cem anos, como afirma a mãe democrata. Mesmo que tivesse, ele só poderia ficar no poder até 2016, quando o pequeno Alex terá 9 anos. Além disso, o serviço militar não é obrigatório nos EUA.

Já o grupo de apoio ao republicano esquece de dizer que, quando alguns dos crimes citados ocorreram, a lei já havia sido votada e políticos de ambos os partidos a consideravam discriminatória, pois o Estado de Illinois já previa a pena de morte para casos de assassinato, independentemente de seu autor fazer parte de uma gangue.

O autor da última peça é justamente Floyd Brown, um dos nomes mais conhecidos na publicidade negativa nos EUA, que a Folha achou em trabalho de campo no Havaí. O trabalho é solitário e malvisto. Os candidatos tentam desvincular a imagem pública dessas agremiações e da forma que agem.

‘Soft money’

Ao anunciar na semana passada que recusaria os US$ 84 milhões do financiamento público -uma instância criada na esteira do escândalo de Watergate, nos anos 70, pela qual o governo repassa dinheiro até aquele limite ao candidato que abrir mão da arrecadação própria-, Obama citou os PACs e os 527 como parte da razão.

Só com a verba pública, argumentou o democrata, ele não conseguiria bater o oponente republicano, pois o partido da situação usaria o chamado ‘soft money’, dinheiro arrecadado por esses grupos, que, por uma brecha na legislação eleitoral local, não precisam respeitar limite de doação. McCain respondeu que não disputava para ser ‘árbitro’ de ninguém.

Ambos falaram meias-verdades. Obama teme a ação dos grupos, que conseguiram prejudicar pelo menos dois candidatos presidenciais democratas -o senador John Kerry, em 2004, e o então governador Michael Dukakis, em 1988. Mas também não queria abrir mão de sua incrível máquina arrecadadora, que deve bater o meio bilhão de dólares até o pleito de novembro.

Já McCain sabe que para sair da lanterna nas pesquisas de intenção de voto nacionais, em que hoje aparece entre 7 e 15 pontos percentuais atrás do oponente, terá de contar com tais grupos, tão eficientes que até um verbo derivado da ação de um deles foi criado: o neologismo ‘swiftboating’, usar anúncio negativo distorcido para prejudicar candidatos.

Não foi por outro motivo que a campanha de Obama montou um esquadrão antiinfâmia, que tenta responder em minutos a alegações e acusações contra o candidato. Na última semana, o democrata ainda pediu que grupos 527 ligados a seu partido se eximissem dessas eleições para mantê-las ‘limpas’.

Um dos que disse que estava desfazendo seu comitê a pedido do candidato foi o MoveOn. O mesmo que depois colocaria no ar o comercial do bebê Alex.’

 

 

***

‘Scorsese’ dos ataques investiga Obama no Havaí

‘No meio dos produtores de anúncios negativos, um nome é considerado uma espécie de Martin Scorsese dos ataques políticos, pela crueza e eficiência com que passa sua mensagem. É Floyd Brown, 47, um dos responsáveis pelo clássico ‘Willie Horton’, peça exibida durante a campanha de 1988 que ajudou o republicano George Bush pai a derrotar o democrata Michael Dukakis.

Naquele ano, ainda durante as primárias democratas, o então pré-candidato Al Gore acusou seu oponente, o então governador de Massachusetts, Michael Dukakis, de ser leniente com o crime, por ter continuado um programa que permitia a detentos passarem o fim de semana fora da cadeia. Um deles era Willie Horton, condenado à prisão perpétua por assassinato em 1974.

Em sua primeira saída usando o programa de fim de semana, em 1986, já com Dukakis como governador, Horton fugiu, estuprou uma garota e atacou violentamente seu namorado, que morreu. Ele seria preso no ano seguinte. Quando Dukakis finalmente bateu Gore nas primárias e enfrentou Bush pai nas eleições gerais, os republicanos ressuscitaram o caso.

Nas palavras de Roger Ailes, então assessor do candidato republicano e hoje presidente da Fox News, ‘a única dúvida era se mostrávamos Willie Horton com uma faca na mão ou sem ela’. A responsabilidade de produzir o filme foi do jovem consultor político Floyd Brown, então com 27 anos. ‘Quando tivermos terminado, as pessoas vão achar que Willie Horton é sobrinho de Michael Dukakis’, teria dito.

O filme -que pode ser assistido em www.youtube.com/ watch?v=EC9j6Wfdq3o- foi colocado no ar pelo National Security Pac 1988 e repetido à exaustão. No dia 8 de novembro de 1988, Bush bateu Dukakis em 40 dos 50 Estados e levou 53,4% dos votos populares.

Pois Brown está de volta. Hoje aos 47, o consultor pôs no ar o ExposeObama, site no qual já há uma coleção de vídeos negativos sobre o candidato democrata. O que já chegou às TVs é o que pinta Obama como fraco em relação a crimes e lembra o de 1988. A resposta a esse anúncio foi um dos primeiros trabalhos do comitê antiinfâmia de Obama, batizado de ‘Fight the Smears’, combata as calúnias.

Mas há outros na fila, já sendo distribuídos pela internet, em sites como YouTube e numa lista de e-mails que, segundo Brown, conta com 2,5 milhões de nomes. O mais engenhoso edita trechos das duas autobiografias de Obama, na versão audiolivro, que é lida pelo próprio candidato, de maneira a colocar um discurso racista antibrancos em sua boca.

Em maio, Brown disse que se sentia ‘uma criança numa loja de doces’ nas atuais eleições, por conta da história de vida de Obama e da abertura a ataques que ela dá. A Folha trocou e-mails com ele na semana passada. ‘Estou no Havaí investigando a família do senador Obama’, disse, antes de parar de responder. Brown crê que a atual campanha está prestes a dar uma ‘virada’, como a de 2004, com John Kerry.’

 

 

***

Desinibidos, marqueteiros dos EUA já criaram até seu Oscar, os Pollie Awards

‘A profissão de publicitário de anúncios negativos é tão estabelecida e ligada às eleições presidenciais norte-americanas que há até mesmo um prêmio que os pares se entregam, os ‘Pollie Awards’ -’Pollie’ sendo contração de ‘Political’, político em inglês, e ‘awards’, prêmios. Da estrutura ao apelido, tentam emular o espírito do Oscar, com tapete vermelho e discursos de agradecimento.

O evento anual, que realizou sua 17ª edição em março em Santa Mônica, na Califórnia, é bancado pela Associação Americana de Consultores Políticos. A maneira com que tratam as atividades de seus profissionais e o cardápio de atividades que oferecem é tão direto e sem embaraços que flerta com o humor involuntário.

Entre as palestras dadas na última edição, por exemplo, estavam ‘Os dez mandamentos do comentarista político’, por Robert Stern, presidente do californiano Centro de Estudos Governamentais. Entre eles, ‘Sempre responda às ligações telefônicas, ou os repórteres deixam de ligar para você’, ‘Se estiver na TV, dê respostas curtas’ e ‘Sinta se a resposta deve ser contra ou a favor’.

Outra mesa-redonda trazia o título de ‘Calling Out the ‘Do Not Call List’ (telefonando para a lista do ‘não me ligue’) -o governo dos EUA oferece tal serviço para assinantes de listas telefônicas que não querem que seu número faça parte das listagens usadas por políticos em época de eleição.

Mas o filé é reservado para a cerimônia de entrega. As categorias vão de ‘placa de jardim’ ao equivalente local de ‘santinhos’, passando por ‘melhor uso de aspecto negativo -categoria televisão’.

Nessa última categoria, a menção honrosa foi a peça ‘Obrigado, diretores de sindicato’, em que atores interpretam trabalhadores que fazem críticas disfarçadas de elogios.’

 

 

RENDA
Clóvis Rossi

A perpetuação da lenda

‘SÃO PAULO – Pesquisa recentíssima do Ipea recolocou em circulação no noticiário a lenda da queda da desigualdade.

Caiu apenas a desigualdade nos salários. Como informa o próprio Ipea, o índice divulgado dias atrás só mede a renda dos ocupados, que inclui os salários, aposentadorias e benefícios de programas de transferência de renda. Mas -atenção, crédulos- juros, lucros e renda da terra, por exemplo, não entram nessa conta.

Portanto, não dá nem para dizer que caiu a diferença de renda entre os assalariados. Afinal, é lógico supor que os mais bem remunerados, embora tenham perdido no salário, ganharam juros de suas aplicações financeiras, mesmo que seja uma modesta poupança. Já os de baixa renda, que viram seu salário aumentar, não têm, em geral, sobra para aplicar em instrumentos financeiros de qualquer raça.

A imperdível coluna ‘Mercado Aberto’ desta Folha já mostrou avaliação de Claudio Dedecca, professor do Instituto de Economia da Unicamp, que acaba de concluir pesquisa a respeito.

Dedecca confirma o que já foi dito repetidamente aqui: não há redução de desigualdade, porque só entram nas contas que a revelariam os ganhos salariais e com a rede de proteção social, como Bolsa Família e aposentadoria. Tais números equivalem a só 40% do PIB.

Não entra, portanto, ‘a renda com ganho de capital das classes A e B, à qual os pesquisadores não têm acesso’. Pesquisadores do próprio Ipea já calcularam em 90% a omissão de dados sobre ganhos de capital na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, mãe da lenda sobre queda da desigualdade.

Se Marcio Pochmann, presidente do Ipea, diz que o Brasil é ‘primitivo’, mesmo com a queda apontada na desigualdade de salários, como qualificá-lo quando se verifica que não há queda na obscena desigualdade de renda?’

 

 

HINO
Carlos Heitor Cony

Do tamanho dos hinos

‘RIO DE JANEIRO – Quando não tinha assunto para um artigo dos muitos que escrevia para diversos jornais portugueses e brasileiros, Eça de Queiroz esculhambava o bei de Túnis, personagem mais ou menos imaginário ao qual ele atribuía malfeitos e incompetência. Conheci um famoso jornalista da imprensa carioca que, na mesma situação (sem um assunto específico), fazia veementes editoriais exigindo novo hino nacional para o Brasil.

Não é que me falte assunto, mas, se nada tenho contra o bei de Túnis, tenho um terror moderado quando, em eventuais cerimônias que contam com minha desnecessária presença, o programa estabelece o canto do nosso belo hino para início dos trabalhos.

Não que seja um hino feio, pelo contrário, a música é bonita, embora um pouco bombástica, dá impressão de alguma coisa parecida com a queda do Império Romano, anúncio de um cataclisma universal. A letra é discutida, há quem goste e há quem deteste, fico no meio termo, acho que poderia ser melhor ou pior.

Fiquei sabendo nesta semana que o poeta Reynaldo Jardim fez letra para um novo hino, com música moderníssima de J. Antunes. Ouvi e gostei, mas não a ponto de substituir oficialmente o atual, cujo principal defeito é o tamanho, sobretudo quando cantado nas duas partes.

Agora mesmo, por ocasião da visita do príncipe japonês, ouviram-se os dois hinos, um deles curto como o território do Japão, outro imenso como o próprio Brasil. Autoridades estrangeiras, não familiarizadas com as duas partes, sentaram-se ao fim da primeira e tiveram de se levantar, constrangidos, para ouvir o resto.

Em tempo: Puccini usou trechos melódicos do hino japonês como ‘leitmotiv’ de sua ‘Madama Butterfly’, o mesmo fazendo com o também curto hino norte-americano.’

 

 

FOLHA
Folha de S. Paulo

Dona Dagmar, viúva de Octavio Frias de Oliveira, é sepultada em SP

‘Foi enterrada ontem Dagmar Frias de Oliveira, viúva de Octavio Frias de Oliveira, que morreu anteontem em São Paulo aos 83 anos.

Cerca de 250 familiares, autoridades e amigos acompanharam o velório no Cemitério Gethsêmani, na zona sul de SP.

Desde a morte do empresário e publisher da Folha, em abril de 2007, as condições de saúde de d. Dagmar vinham se deteriorando. Os dois foram casados por mais de meio século.

D. Dagmar não resistiu às complicações decorrentes de um quadro de insuficiência cardíaca e renal. Faleceu anteontem às 13h50, na casa da filha Maria Cristina.

No velório, emocionado, o governador de São Paulo, José Serra (PSDB), lamentou a morte de d. Dagmar e relembrou o relacionamento dela com Octavio Frias de Oliveira. ‘Foi uma história de amor desde que se conheceram. Era realmente quase impossível conceber d. Dagmar sem seu Frias e seu Frias sem d. Dagmar.’

O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (DEM), declarou que d. Dagmar ‘tinha uma solidariedade permanente ao lado de seu Frias.’

O ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB) afirmou que a viúva de ‘seu’ Frias foi uma grande apoiadora e incentivadora do marido. ‘Eles sempre tiveram uma família belíssima, com filhos, netos e bisnetos, todos unidos e com muitos valores’, disse.

A ex-prefeita Marta Suplicy (PT) afirmou que tinha um apreço muito grande pela viúva do publisher. ‘Eu tinha uma simpatia muito grande pelo jeito de d. Dagmar.’

O médico Raul Cutait disse que, após 20 anos de convivência com a família Frias, tem em d. Dagmar um exemplo de integridade e de dedicação.

A atriz Bruna Lombardi acompanhou o velório ao lado do marido, o ator Carlos Alberto Riccelli. ‘Ela era um exemplo de pessoa amorosa, apaixonada’, afirmou Bruna.

Acompanharam o velório o secretário estadual da Justiça, Luiz Antonio Marrey, o ex-prefeito e deputado federal Paulo Maluf (PP), o médico e deputado federal José Aristodemo Pinotti (DEM), o advogado Ives Gandra Martins, os jornalistas Boris Casoy e Lillian Witte Fibe e a atriz Giulia Gam.

Dagmar passou a infância e a adolescência na Vila Mariana, tradicional bairro paulistano. Foi professora de ensino fundamental na juventude.

Sua vida sempre esteve voltada aos cuidados com a família. Além dos filhos Otavio, Maria Helena, Luís e Maria Cristina, Dagmar Frias de Oliveira deixa nove netos e três bisnetos.’

 

 

TELEVISÃO
Daniel Castro

Computador da Globo faz galã virar surfista profissional

‘Um software desenvolvido exclusivamente para a TV Globo por uma instituição dos EUA transformará Carolina Dieckmann, Marcos Palmeira, Kayky Brito, Marcelo Novaes, Leonardo Carvalho, Paulo Vilhena e Rodrigo Hilbert em exímios surfistas, daqueles que pegam ondas gigantes. À exceção de Vilhena e Hilbert, nenhum desses atores surfa.

O programa de computador permitirá à emissora inserir o rosto dos atores, com perfeição, nos corpos de dublês-surfistas profissionais. Dessa forma, os personagens parecerão surfistas verdadeiros na próxima novela das sete da Globo, ‘Três Irmãs’. Na trama, Hilbert e Vilhena serão surfistas de ponta, que disputam campeonato mundial, com gravações em Bali (Indonésia) e no Havaí.

O software foi desenvolvido pelo Institute of Computer Technology, de Los Angeles. Nesta semana, Dieckmann, Hilbert, Novaes, Palmeira, Brito e Carvalho irão a Los Angeles fazer o registro fotográfico de suas expressões faciais (Vilhena já fez). Isso será feito em um equipamento que só existe nos EUA. A máquina transforma a expressão facial em informações digitais que possibilitam a superposição de imagens. Os dublês gravam as cenas de surfe usando adesivos em seus rostos. Os adesivos formam pontos que, depois, em computação gráfica, permitem inserir o rosto do ator no corpo do dublê.

A Globo resolveu investir nesses efeitos especiais porque o surfe será a base de ‘Três Irmãs’. A emissora não quer decepcionar o fã do esporte.

A MUSA DA DELEGACIA

Clarissa Kiste (foto), 30, está se destacando no irregular elenco da série policial ‘9MM: São Paulo’, da Fox, em que interpreta a investigadora Luiza. Com formação acadêmica, Kiste já fez muito teatro e pequenas participações na Cultura. ‘A Luiza foi mãe aos 15 anos e tem uma filha adolescente. Ela é workaholic e não tem maturidade para lidar com a filha’, conta.

MUDA POUCO

Haverá pouca mudança na grade da Globo no segundo semestre. Segundo Octavio Florisbal, diretor-geral, ‘Casos e Acasos’ e ‘Faça Sua História’ serão mantidos após a Olimpíada. As estréias se limitarão às co-produções, como ‘Ó Paí, Ó’.

MARTELADA

Inicialmente previsto para durar duas horas, o ‘novo’ ‘Programa Silvio Santos’, do SBT, cresceu. Terá hoje mais de cinco horas (quase igual aos velhos tempos), das 13h às 18h30. A pedidos de telespectadores, o ‘Jogo do Martelo’ está de volta.

VALENTINA

Quadro exibido no ano passado pelo ‘Fantástico’, ‘O Mundo de Valentina’ vai voltar. Desta vez, no ‘Happy Hour’, do canal GNT. Pai de Valentina, hoje com um ano, Gabriel Moojen continua insistindo em ações para melhorar o planeta.

Pergunta indiscreta

FOLHA – É verdade que o sr. virou uma onça por causa da reprise de ‘Pantanal’ pelo SBT?

BENEDITO RUY BARBOSA (autor de ‘Pantanal’, que tenta impedir sua reprise pelo SBT, porque vendeu o roteiro à Globo) – Eu não estou nem um pouco feliz. Mas não posso falar sobre isso porque o caso está na Justiça.’

 

 

Bia Abramo

‘Pantanal’ é o triunfo da simplicidade

‘MUITAS imagens aéreas do Pantanal. Rios, corixos, terras alagadas. Vastidão, céu e horizonte. Muito close de bicho -jacaré, tuiuiú, garça. Uns pares de bons atores e uma história, bem, simples. ‘Pantanal’ marcou época como uma novela que conseguiu amedrontar a Globo, mas também como uma tentativa bem-sucedida de empreender uma narrativa fora dos eixos.

Mais lenta, reduzida a elementos dramáticos descomplicados, longe dos cenários habituais -nem o Rio da zona sul ou do subúrbio estilizado, nem o Nordeste genérico e folclórico, nem mesmo a São Paulo da imigração pitoresca-, ‘Pantanal’ se impôs, aos poucos, como uma alternativa de qualidade às novelas da Globo.

Quase 20 anos depois, a história se repete. Depois de mais uma novela das oito da Globo que pretende fazer ‘a’ leitura do Brasil contemporâneo e das estripulias juvenis da Record, há ‘Pantanal’, com suas paisagens reconfortantes.

Quer dizer, se repete com um pouco mais de barulho, é verdade, por conta de uma pendenga judicial entre o SBT, que exibe a novela desde o início do mês de junho, e a Globo, que detém os direitos sobre o texto e as imagens da obra.

O fato é que ‘Pantanal’ deu uma injeção de ânimo na audiência da emissora -o que significa que há muita gente que quer ver ou rever a novela. Os motivos que levam à nostalgia são mais decifráveis -não à toa, a Rede Globo mantém há anos um horário exclusivamente dedicados às reprises de novelas.

Mas, na leva dos dez pontos de Ibope que a trama vem obtendo, certamente há novos espectadores -muito jovens ou muito pobres, ainda fora do mercado de consumo dos televisores, à época da primeira exibição, em 1990.

O que será que ‘Pantanal’ ainda tem de atraente para esses espectadores, menos adestrados pela convenção global? É, de fato, uma pergunta que a coluna faz.

O que dá para arriscar, num nível puramente hipotético, é atribuir a esse público ‘novo’, formado nesse hiato entre a primeira e a quarta exibição (a Manchete transmitiu outras duas reprises), uma preferência pela diversidade e pela novidade -mesmo que uma já entrada em anos.

E, de resto, ‘Pantanal’, ontem ou hoje, acertou o passo ralentando-o, escandindo as cenas -até, na verdade, o ponto da saturação- e interiorizando o Brasil. Continua funcionando a opção por uma história mais simples, de gente mais simples e ancorada no espetacular cenário das terras alagadas do interior do Mato Grosso.’

 

 

Cristina Fibe

Ator de ‘Entourage’ dirige filme sobre celebridades

‘Adrian Grenier, 31, é um caso raro em Hollywood. Protagonista de uma série sobre celebridades, o ator não era conhecido há quatro anos, quando ‘Entourage’, da HBO, começou. Tampouco o era seu personagem, Vince, também ator. Os dois ficaram famosos juntos.

Enquanto o cabeça-de-vento Vince se aventurava por filmes independentes e finalmente conseguia ser dirigido por James Cameron (‘Titanic’), Grenier inaugurou uma produtora, ‘namorou’ Anne Hathaway em ‘O Diabo Veste Prada’ (2006), engajou-se em um programa de TV sobre consciência ambiental e, hoje, dirige um documentário sobre ‘fama e sociedade’. ‘Tive uma oportunidade rara [de ser famoso em Hollywood], o que não acontece com muita gente. Apesar de, cada vez mais, os 15 minutos de fama estarem sendo distribuídos, graças ao YouTube’, ri. ‘Mas reconheço que é fascinante, e quero dividir com as pessoas, avançar a discussão’, afirma o ator a um grupo de jornalistas, em Londres.

De calça jeans, camiseta preta, barba e cabelos propositalmente desgrenhados, Grenier diz que o ‘mundo sofre com o excesso de relações-públicas’. ‘É muito dinheiro gasto, todos tentando proteger suas imagens, tanto que você não consegue pinçar nada real.’ Por isso, decidiu dirigir um documentário que mostre os bastidores da fama em Hollywood.

Ao lado de paparazzi, fingindo ser um, ele perseguiu celebridades como Brooke Shields e entrevistou figuras como Paris Hilton para, segundo ele, mostrar um pouco da ‘realidade’ filtrada por RPs. ‘Sou muito crítico, tendo a pensar demais, vejo a fama de forma mais complexa do que algumas pessoas que apenas a aceitam. Gosto de dissecar as coisas, e esse é um dos motivos pelos quais estou no projeto.’

Ao contrário de Vince, que mora em Los Angeles e é cercado de parasitas -seu ‘entourage’-, o ator vive no Brooklyn, em Nova York, com amigos que ‘pagam o aluguel’, e não quer parecer deslumbrado.

Mas sua maior discordância em relação a Vince é o fato de ele (o personagem) ser consumista e afeito ao desperdício. Como recomenda a atual cartilha das celebridades, Grenier é ‘verde’, defende o ambiente, não poupa críticas ao personagem e até produz um programa para o Planet Green, novo canal 24 horas do Discovery.

‘A série retrata um modo de vida que existe, e no qual muita gente se inspira, nos EUA e fora de lá: o estilo consumista. Esse é o lado negro do conto. As partes construtivas da série são os valores de amizade que os personagens têm, e a lição que o programa deixa é que o estilo superficial é passageiro. Os valores da amizade e da família são mais permanentes e desejáveis’, defende.

Grenier diz ainda que ‘sempre tentou’, em vão, que os roteiristas de ‘Entourage’ fizessem com que Vince se tornasse ‘verde’. ‘Por exemplo, [me incomoda] o fato de eles [os personagens] dirigirem um [jipe de estilo militar] Hummer: eu não gostaria que isso fosse ensinado ou promovido, mas os roteiristas, com razão, dizem ‘esse não é o personagem’ e não mudam. Então há muita integridade na série.’

A jornalista CRISTINA FIBE viajou a convite do canal HBO’

 

 

CINEMA
Silvana Arantes

Filme com fome

‘‘Em um país que é conduzido pelos princípios da razão, a miséria é motivo de vergonha. Em um país que não é conduzido pelos princípios da razão, a riqueza é motivo de vergonha.’

Foi como se a frase no livro ‘Desobediência Civil’ (Henry David Thoreau) saltasse da página, quando José Padilha a leu.

A citação de Thoreau soou ao diretor de ‘Tropa de Elite’ -fenômeno popular no Brasil e vencedor do Festival de Berlim deste ano- como uma síntese do entorno moral de seu novo filme, ‘Garapa’.

De volta ao documentário, gênero que o projetou no cinema, a partir de ‘Ônibus 174’ (2002), sobre um sobrevivente da chacina da Candelária convertido em criminoso, Padilha desta vez registra a situação de quem passa fome no Brasil.

No lugar do leite

O título do filme remete à principal ‘refeição’ servida às crianças de duas das três famílias cearenses sujeitas à fome, cuja rotina o diretor acompanhou durante 30 dias.

À falta de leite, as mamadeiras enchem-se de água com açúcar na casa de Robertina (11 filhos) e na de Rosa (três filhos), que vivem, respectivamente, nas cercanias da cidade de Choró e na zona rural em torno da Vila Olho d’Água.

No barraco de Lúcia (três filhas), na periferia de Fortaleza, a garapa não é comum, mas a situação não é em nada melhor.

São das crianças as primeiras imagens do filme, rodado em preto-e-branco. No chão de terra, dois irmãos correm nus. Eles brincam, enquanto sua mãe caminha mais de 12 km para buscar leite. Em vão.

Não se notam sinais de folia em Vila Olho d’Água, mas é Carnaval, e ‘a pessoa que entrega o leite não estava disponível’, diz a funcionária do posto da prefeitura, onde pende um cartaz do partido à frente da gestão. Rosa faz meia-volta, e a câmera a segue, de longe.

‘Minha idéia era fazer um filme que fosse cru, o mais básico possível em termos de cinema; um filme com fome, tão próximo do cinema verdade quanto eu conseguisse’, diz Padilha.

É norma da corrente do cinema verdade que o diretor não interfira na realidade filmada. Isso Padilha não conseguiu. Numa cena do filme, Ronaldo, 4, chora, com dor de dentes, efeito do consumo de açúcar da garapa. Sem dinheiro, dentista nem remédio ao alcance, os pais nada podem fazer.

O espectador descobre que Padilha deu remédio ao garoto, quando o pai da criança menciona o fato, em cena seguinte.

‘Algumas coisas não dava para não fazer. Não dava! Era impossível não dar um remédio para uma criança sofrendo. Eu dei. Tentei interferir o mínimo possível, mas às vezes era impossível. Deixei uma das minhas interferências no filme, para mostrar que é difícil ficar indiferente a isso’, diz Padilha.

A reação que o diretor espera do espectador é que este abandone a indiferença em relação ao problema da fome no Brasil.

Citando o zoólogo inglês Desmond Morris, Padilha diz que ‘uma relação despersonalizada não é uma relação biologicamente humana. A maioria das pessoas não sente empatia, não se move emocionalmente para ajudar quem desconhece’.

‘Garapa’ ambiciona, segundo Padilha, ‘resgatar a individualidade dessas pessoas que muitas vezes são olhadas só pela perspectiva macroscópica’.

Nessa escala, ‘que também deve existir’, o diretor estima que seus personagens vivam na mesma condição de, ‘no mínimo, 11 milhões de brasileiros’.

Fundo do poço

A cifra é deduzida de recente pesquisa do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) com os usuários do programa Bolsa Família -11,1 milhões de famílias cadastradas, nas quais o Ibase estima 51 milhões de indivíduos.

‘A pesquisa pega famílias em situações diferenciadas de pobreza, desde gente que não tem renda e apresenta outra série de vulnerabilidades até os que se enquadram no programa, mas têm uma certa renda regular. ‘Garapa’ fala das famílias que estão no fundo do poço’, diz Francisco Menezes, diretor do Ibase. Lá estão 11 milhões, segundo a pesquisa.

No filme de Padilha, eles se encarnam na família de Rosa, cadastrada no Bolsa Família, sua única fonte de renda.

Mas há famintos brasileiros que não aparecem nas estatísticas, como a Lúcia de ‘Garapa’. Ela não possui documento de identidade, essencial ao cadastramento no Bolsa Família. Logo, Lúcia não entra na conta.

Padilha encontrou-a numa ONG suíça que se ocupa de crianças desnutridas em Fortaleza. Pediu autorização para filmá-la, e ela concedeu à câmera o testemunho de sua miséria financeira e emocional. Ela recebe esmolas de vizinhos e insultos recorrentes do marido.

No país em que os rótulos ‘estética da fome’ e ‘cosmética da fome’ são grudados por críticos de cinema, em sinal de aprovação ou desprezo, aos filmes em torno dos miseráveis, Padilha tratou Lúcia e os demais personagens de com um respeito sem comiseração.

‘É um filme com uma visão de constatação. Não toca a tecla emocional. É mais racional, não no sentido de frio e distanciado, mas no que leva a pensar uma solução, ainda que o cinema não seja um instrumento de mobilização social’, afirma o montador Felipe Lacerda.

Qualquer que seja a solução proposta para erradicar a fome no Brasil, Padilha tem seu axioma: ‘É eticamente inadmissível que alguém, no grupo dos beneficiados históricos deste país, olhe para os miseráveis que não têm o que comer e diga que os R$ 58 que o governo dá a ele são uma política errada’.

‘Garapa’ atesta, porém, que o auxílio do Bolsa Família é insuficiente aos que o recebem, além de inacessível aos miseráveis sem documentados.

Em suma, o diretor de ‘Tropa de Elite’ fez outro retrato de um país onde ‘o Estado é globalmente ineficiente -na segurança pública, na Justiça, na educação e também nos programas sociais’, como ele diz.’

 

 

***

Novo filme será drama em prisão

‘A prisão boliviana de San Pedro, à qual se reputa a produção de cocaína de alta qualidade, será a protagonista de um novo filme de ficção escrito e dirigido pelo cineasta José Padilha.

É lá que se desenrola a saga pela sobrevivência do traficante de drogas inglês Thomas McFadden, relatada no livro ‘Marching Powder’, de Rusty Young, que Padilha adapta num roteiro para cinema.

‘É uma prisão muito singular, cujo funcionamento é uma metáfora da vida’, diz o diretor. O ator norte-americano Don Cheadle (‘Hotel Ruanda’), aceitou o papel de McFadden.

Para o brasileiro Wagner Moura, o consagrado Capitão Nascimento de ‘Tropa de Elite’, Padilha diz que reserva ‘um papel fenomenal’.

Os produtores, entre os quais está a Plan B, do astro Brad Pitt, ainda não determinaram a data das filmagens. Além de ‘Marching Powder’, Padilha deverá rodar outra produção internacional, com o estúdio Warner, cuja trama gira em torno dos mecanismos de financiamento do terrorismo.

No Brasil, o cineasta tem dois projetos em andamento. Ele produz ‘Paraísos Artificiais’, longa de seu sócio, Marcos Prado (‘Estamira’), a ser filmado no começo do ano que vem.

Com o sociólogo Luiz Eduardo Soares, escreve o roteiro de ‘Nunca Antes na História deste País’, que, segundo ele, ‘relata a política na sua interação com os empresários, a mídia, os artistas, a segurança pública’.

Considerando que o cineasta Fernando Meirelles anunciou, no ano passado, a intenção de fazer um documentário sobre o Congresso Nacional, e que o montador Felipe Lacerda (‘Ônibus 174’, ‘Central do Brasil’) finaliza o documentário ‘Fazendo Política’, sobre os meandros da atividade, Padilha avalia que o Brasil tem ‘uma safra de filmes a respeito da elite vindo aí’.

Na opinião do cineasta, ‘o cinema brasileiro está pronto para começar a discutir essas coisas outras [que a miséria]’.

Meirelles reafirma sua intenção de abordar a política brasileira num filme, mas diz que o projeto ainda não tem data para sair do papel.

‘Quero fazer o documentário, mas, com o lançamento de ‘Ensaio sobre a Cegueira’ [previsto para o dia 12/9] e a minissérie [‘Som e Fúria’, que dirigirá para ser exibida na TV Globo], parei de pensar nisso. Mas vai sair. Sei lá quando’, afirma.’

 

 

***

‘Uso do açúcar é estratégia das famílias pobres’

‘O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas entrevistou 5.000 usuários do cartão Bolsa Família, em 229 municípios brasileiros, entre setembro e outubro de 2007. O resultado da pesquisa foi divulgado na última sexta.

Francisco Menezes, diretor do Ibase, que colaborou com o projeto de ‘Garapa’ dando informações ao diretor José Padilha, afirma que ‘o filme consegue mostrar como se concretizam as coisas vistas na pesquisa’.

Sobre o uso da garapa como alimento primordial, conforme o filme registra, Menezes diz: ‘O açúcar é uma estratégia das famílias em extrema pobreza. Compram uma quantidade de alimentos que dura até determinado dia e uma quantidade maior de açúcar, para mantê-los de pé até receber de novo o Bolsa ou outro programa de governo’.

As famílias do filme enquadram-se no perfil da ‘insegurança alimentar grave: o caso de pessoas em situação permanente de falta de comida’.’

 

 

FOTOGRAFIA
Claire Guillot

‘São apenas fotos, não a vida’

‘Para encontrar a americana Annie Leibovitz é preciso mostrar a que se veio. Quem quer que seja deve enviar seu currículo (‘detalhado, por favor’) com antecedência. E, de todo modo, não espere muita coisa: você terá no máximo 20 minutos com ela.

Aos 58 anos, a fotógrafa das estrelas imortalizou todos os que contam no planeta, sejam políticos, esportistas, atores, cantores ou empresários, de George Bush a George Clooney, de Patti Smith a Bill Gates.

E as maneiras de seus modelos parecem ter-se decalcado nela. Para o vernissage em Paris de sua exposição na Casa Européia da Fotografia [até 14/9], ela chegou de limusine.

E suas entrevistas mais parecem ‘junkets’, esses pequenos encontros em série que os astros do cinema fazem com a imprensa internacional.

Destaque da revista ‘Vanity Fair’ há 25 anos, ela começou na ‘Rolling Stone’ com 20 anos, em 1970, clicando os heróis da era rock and roll. Quem não se lembra da simbólica foto de John Lennon nu, enrodilhado em Yoko Ono, feita horas antes de seu assassinato?

Outras imagens suas também causaram sensação, como a de Demi Moore, em 1991, grávida de oito meses e vestida apenas com um enorme anel de brilhantes. Hoje Annie Leibovitz é a retratista mais requisitada do mundo. E a mais cara.

Mas de perto a fotógrafa americana não tem nada de estrela. Calma, direta, vestida descontraidamente, sem nenhuma maquiagem, deixa claro que seu modo de vida não tem nada de glamouroso.

‘Eu não almoço com Mick Jagger, se é o que você quer saber. Há algumas pessoas das quais me tornei amiga, como Patti Smith, mas é muito raro.

Todos nós temos agendas sobrecarregadas.’ E acrescenta: ‘De todo modo, não tenho necessidade de muitos amigos’.

A fotógrafa não recua diante de nada para tirar ‘a’ foto: mandar construir um aquário gigante para nele mergulhar a atriz Kate Winslet ou obrigar Demi Moore a suportar 13 horas de maquiagem para aparecer nua com um falso figurino pintado sobre o corpo.

Ninguém se recusa a posar para Leibovitz. Mas, mesmo para a estrela da fotografia, a liberdade é estreitamente vigiada. Na indústria em que se tornou a celebridade, Leibovitz é antes de tudo uma engrenagem eficaz. E sabe disso.

‘Está no meu contrato que devo fazer capas, mas não gosto. As capas servem para vender, as revistas são obcecadas por elas. Não posso pedir que as pessoas posem com suas roupas de todo dia, elas têm de usar marcas. Nesse nível deixa de ser uma foto, é publicidade.’

Fotos irônicas

Ela gosta mais das fotos irônicas, como a do bilionário Donald Trump, ridículo ao lado de sua mulher muito jovem e grávida, vestida com um biquíni dourado, ao pé de um jatinho.

‘São as que prefiro. Mas nem sempre é possível.’ A maioria de seus retratos são imagens eficazes e espetaculares, que quase sempre atingem o alvo.

Ao contrário das celebridades que fotografa, Leibovitz fala à vontade sobre sua vida privada. Sua exposição nasceu de um livro intitulado ‘La Vie d’une Photographe – 1990-2005’ [A Vida de Uma Fotógrafa], que mistura suas fotos de estrelas em ricas cores com um grande número de imagens pessoais em preto-e-branco.

Ou seja, de um lado um mundo de sonho e beleza, onde o tempo não passa. E, do outro, um mundo de dor e tristeza.

Pois, apesar de alguns instantes de felicidade familiar, como o nascimento de suas três filhas, lembramo-nos sobretudo das imagens que mostram a famosa ensaísta Susan Sontag, que foi sua companheira durante 15 anos, definhando de câncer em um hospital e finalmente morrendo.

‘Quando fiz esse livro, vi as fotografias desse período e percebi que as mais importantes para mim eram as fotos pessoais. Susan acabara de morrer, meu pai acabara de morrer…

Em certo momento isso coloriu toda a minha vida.’

Seu discurso desacelera.

Tenta explicar por que fez essas fotos. ‘Quando os tratamentos fracassaram, me obriguei a fotografar. Susan teve uma morte horrível, dolorosa. Quando estamos assustados, angustiados, recorremos ao que nos define.

Tinha a fotografia antes de conhecer Susan, e a teria depois dela. Utilizei-a como consolo.’

Sua emoção é visível, mas se recompõe rapidamente. Fotografou celebridades demais para se deixar levar pela ilusão das imagens. ‘Você sabe, são apenas fotos. Fabrico uma história.

Mas não é a vida.’

Os 20 minutos se passaram.

Annie Leibovitz cumprimenta a repórter pelas perguntas. Ela gostaria de continuar, então propõe que você lhe telefone mais tarde. Mas alguns dias depois sua secretária lhe dirá que ela está ocupada demais.

A íntegra deste texto saiu no ‘Le Monde’.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .’

 

 

LITERATURA
Beatriz Resende

Histórias de boa e má famas

‘Celebridade é, decididamente, uma palavra mágica. Vende revistas, filmes, downloads de música para celulares, álbuns de figurinha ou sapatos incômodos.

Pergunto-me se o estudo de Chris Rojek (da Nottingham Trent University, Reino Unido), ‘Celebridade’, chegaria ao Brasil, país tão parcimonioso na publicação de estudos teóricos, se tivesse outro título.

O livro é sério, e, mesmo que a pesquisa realizada não seja das mais áridas, é vasta e honesta, mas sete ou oito anos após ser escrito, chega velho e se revela, por trás de um biombo ‘trompe l’oeil’ pós-moderno, tímido e conservador.

A parte inicial na obra tem sua originalidade ao concentrar a análise na própria figura da celebridade.

Ênfase na pessoa

Ainda que anunciando tratar a celebridade como ‘a atribuição de status glamouroso ou notório a um indivíduo dentro da esfera pública’, sua atenção maior é às características pessoais da celebridade e abre seu elenco com a brasileira Gisele Bündchen, apresentada como ‘glamourosa’.

Essa simpática citação, aliás, mereceu crítica de Georges-Claude Guilbert, na revista ‘Cercles’, que considerou que seria melhor mencionar alguma diva de Hollywood ou da MTV do que a supermodelo brasileira, fazendo a ressalva: ‘Sem nenhuma xenofobia’! Na conceituação inicial, o autor faz distinção entre celebridade, notoriedade e renome. O renome depende de contato parassocial pessoal ou direto, enquanto celebridades são criações culturais.

A celebridade pode ser conferida, adquirida ou atribuída, e a notoriedade analisada é, predominantemente, aquela conquistada por ‘transgressões’ que permitiriam ‘ao indivíduo carente de realização o reconhecimento da mídia’.

Dois conceitos novos complementam o de celebridade: o ‘celetóide’, exemplo de sucesso efêmero, cometas na área dos esportes, heróis do dia; e os ‘celelatores’, criações satíricas, personagens de quadrinhos.

Os exemplos estudados, revelando infelicidades, suicídios e riscos corridos por celebridades como John Lennon, que se afastou dos holofotes por opção em diversas ocasiões e acabou assassinado por um fã, leitor de [J.D.] Salinger, muda o foco habitual dos estudos. Isso acontece sobretudo ao tratar dos jovens criminosos ou políticos transgressores.

Nesse momento, o papel da confissão aparece decisivo para a redenção. Lembramos no caso Ronaldo Fenômeno, que não fez mal a ninguém, exceto a ele próprio, ao enjoar de aspirantes a famosas e intermediários de serviços exclusivos de celebridades e se meter em imensa confusão.

Ao que parece, a confissão do jovem -certamente mais sincera que a de Bill Clinton- lhe salvou os patrocinadores.

Essa aproximação personalizada, no entanto, termina por levar o autor a centrar-se excessivamente em relações individuais. Repetidas vezes o grande problema que assola as celebridades é o cisma entre o rosto público e o ‘eu verdadeiro’: ‘A celebridade baseia-se na montagem de um rosto público que necessariamente altera o eu verdadeiro’.

Isso de ‘eu verdadeiro’, a esta altura do debate sobre múltiplas identidades, parece um pouco revelações na ilha de ‘Caras’! Com esse movimento para o puramente individual, o autor se torna especialmente tímido em relação ao papel da mídia.

Opõe-se à franqueza de uma Susan Sontag ao dizer que a afirmação de André Glucksmann ‘guerra agora é um evento de mídia’ é ‘indecente’, ainda que acerte no alvo.

O famoso circo da mídia a celebridades é surpreendentemente poupado quando Rojek menciona Lady Di apenas a propósito da bulimia ou do corte de cabelo.

Impossível não lembrar aqui a força das declarações de Pierre Bourdieu ao falar da cobertura de imprensa na morte da princesa e dos ‘que exploravam muito além dos limites da decência o filão jornalístico’.

Temas inadiáveis

O processo eleitoral latino-americano, em que figuras de presidentes pouco adequadas ao citado perfil de marketing político de estilo hollywoodiano conquistam a simpatia dos eleitores, a ascensão de Barack Obama [candidato democrata] nos EUA, a força da cultura da periferia das grandes cidades produzindo seus próprios ídolos, a defesa de novas formas de livre difusão e acesso à cultura, sobretudo a digital, são questões que vêm trazendo temas inadiáveis -inclusive no debate sobre o processo democrático na mídia, na gestão da cidade, da política em geral.

O intelectual que limitar suas análises ao comportamento individual, quer da celebridade, quer do fã, acabará, como Rojek, vendo na democracia ‘condição social e psicológica’ que revela apenas ‘falta generalizada de satisfação’, para concluir sua obra de forma conservadora e simplista: ‘Enquanto a democracia e o capitalismo prevalecerem, haverá sempre um Olimpo, habitado não por Zeus e sua corte, mas por celebridades elevadas acima da massa.’

Saudades de Bourdieu e suas pesquisas sobre o ‘sofrimento social’.

BEATRIZ RESENDE é professora da Escola de Teatro da UniRio, coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do CNPq.

CELEBRIDADE

Autor: Chris Rojek

Tradução: Talita M. Rodrigues

Editora: Rocco (tel. 0/xx/21/ 3525-2000)

Quanto: R$ 38 (224 págs.)’

 

 

 

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