Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Folha se esquiva da controvérsia

Não compactuo com a teoria do golpismo midiático pregada pelos desesperados petistas, mas confesso que estou perplexo com o tom beligerante e capcioso da Folha de S. Paulo nas últimas semanas. Na segunda-feira, 4, por exemplo, o colunista-esteta-literário Vinícius Torres Freire sentenciou: ‘Faleceu neste final de semana o petismo-lulismo. Não resistiu a um mês de ferida aberta, a quatro semanas de Roberto Jefferson e de jornalismo’. Mais adiante, ele arrematou: ‘Falta reforma institucional [ao país]. Privatizar e sujeitar instituições ao controle social (…)’. O ‘desabafo’ de Freire vem somar-se ao de outro jornalista da mesma Folha. No dia 20 de maio, na versão online do jornal, Kennedy Alencar sugeriu o seguinte: ‘Privatização diminuiria ladroagem política’.

Está certo que parte do PT está mergulhada na lama da política nacional, mas isso não significa que o petismo acabou. Grande e articulado como é, o partido não se resume a sílvios, delúbios, genoinos e dirceus. Muito pelo contrário, gente séria e decente como Antônio Cândido, Marilena Chauí, Emir Sader também integram (mesmo não-oficialmente) a hoste petista. Além dos expoentes intelectuais, o partido também conta com parlamentares do calibre de Cristóvam Buarque, Eduardo Suplicy, Chico Alencar, Walter Pinheiro e Ivan Valente. Ou seja, não é prudente condenar à vala comum todo o organismo petista, sob pena de se promover um linchamento coletivo e a conspurcação indiscriminada de biografias.

A Folha tem, entre seus articulistas, o insuspeito Luiz Carlos Mendonça de Barros. Sim, aquele mesmo do escândalo da privatização das teles no governo FHC. Mais acima, no seu Conselho Editorial, figura o oprimido Carlos Heitor Cony, a quem, como a milhares de brasileiros, foi dado o direito de receber a bagatela de R$ 1,4 milhão, mais pensão vitalícia mensal de R$ 19 mil, valores do ressarcimento pela ‘perseguição’ por ele sofrida durante a ditadura militar. Seguindo-se a lógica da generalização, seria injusto colocar todo o plantel do jornal no limbo da hipocrisia?

No fundo, é estranha e esquizofrênica a postura do diário paulista. Se, por um lado, o veículo critica o modelo neoliberal de Lula, por outro defende a privatização de empresas públicas como forma de atacar a corrupção. Se há algo que a política econômica ortodoxa de Palocci ainda não fez foi privatizar patrimônio para pagar dívida (ou equilibrar a balança de pagamentos, como dizem os yuppies da PUC-Rio). O boom exportador por que passa o país tem se incumbido dessa tarefa. A Folha até se esforçou em desqualificar esse que é um dos poucos méritos do governo. Na ótica do jornal, primeiro foi o dólar supervalorizado que determinou o saldo positivo. Meses depois, com a moeda americana em baixa e os recordes seguidos das exportações, o matutino deixou de problematizar a questão.

Coerência zero

Voltando à história da privatização, soa ingênuo – para não dizer patético – o argumento de ‘controle social das instituições’ proposto por Torres Freire. Ele próprio trata de desconstruí-lo ao fim de seu texto: ‘Isso não vai funcionar direito se o país continuar a fabricar a pior iniqüidade social do mundo, se for um país de semicidadãos ignorantes (…)’.

Com a privatização de novas empresas, o país, entregue à incensada economia de mercado, gerará nova massa de desempregados, mas o serviço prestado não vai melhorar e a população semi-analfabeta não terá a mínima condição de brigar pelos seus direitos. Por que diabos, então, a palavra privatização pipoca nos textos dos profissionais mais ilustres da Folha de S. Paulo? O que há por trás disso? Lógica racionalizante? Ou o lobby reles, dissimulado e nunca devidamente esmiuçado que ‘enfeitiça’ a nossa imprensa? Lembram da recente e pouco discutida proposta da Schincariol à revista IstoÉ?

A imprensa (mídia) é um poder que começa e acaba em si mesmo. Turma mais corporativista não há. Não se admite regulá-la, sequer contestá-la (este Observatório é um dos únicos fóruns de expiação de que nós, pobres mortais, dispomos). Agora, cabe perguntar: por que quando começa a marola do denuncismo logo se atinge um maremoto capaz de derrubar governos? O que estavam fazendo os nossos incautos jornalistas enquanto as ratazanas da República se locupletavam às custas do dinheiro público? Por que, de uma hora para outra, torna-se tão fácil conseguir provas que incriminam os suspeitos da roubalheira? E, finalmente, por que acusados transformam-se em vestais e adquirem, sem grandes averiguações, status de fonte insuspeita?

Somadas à defesa indisfarçada da privatização do patrimônio público, essas também são perguntas que a Folha – e outros gloriosos veículos – se omite em esclarecer.

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Relações-públicas, Salvador