Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Governo em polvorosa

Aconteceu tudo muito rápido. No período de menos de uma semana, uma reportagem injuriosa foi publicada em 9/5 contra o presidente Lula, que por sua vez reagiu cassando o visto do repórter, correspondente do New York Times no Brasil – o que causou um abalo mundial na imagem do Brasil como país democrático. Pouco depois, a reação geral levou à suspensão da cassação, em 14/5, e ao que o governo chamou diplomaticamente de retratação do correspondente – mesmo que tenha sido apenas uma nota dos advogados do jornalista lamentando o mal-estar, e em momento algum um pedido de desculpas do jornal.

Foi com surpresa e indignação que os brasileiros souberam, na semana passada, de uma reportagem dada no jornal mais influente do mundo sobre supostos problemas de alcoolismo do presidente Lula. Todos os brasileiros sabem que essa não é uma preocupação do povo. A história poderia morrer aí, com grunhidos de desaprovação do governo a uma reportagem mal apurada, e em pouco tempo já estaria tudo esquecido. Não foi o que houve e os efeitos colaterais do remédio se mostraram mais fortes que o mal em si. Também surpresos, os meios de comunicação e organizações brasileiras e do mundo todo ficaram eriçadas ao saber que o visto de permanência no país do correspondente seria cassado pelo governo, num gesto só testemunhado durante a ditadura militar.

No dia 13/5, o Superior Tribunal de Justiça deu a primeira aliviada na imagem do país, declarando que bloquearia temporariamente a expulsão de Larry Rohter. Assim, o jornalista recebeu autorização para permanecer no país até que o tribunal decidisse se a cassação do visto foi constitucional. Mais tarde, o governo retirou o pedido de cassação mediante a retratação que, afinal, não ocorreu de fato, mas Brasília fingiu que aconteceu e está tudo bem.

A reportagem de Rohter dizia que ‘os tragos do líder brasileiro tornam-se problema nacional’. André Singer, porta-voz de Lula, pediu ao embaixador brasileiro em Washington que transmitisse ao Times a indignação do governo e sua surpresa em relação às ofensas gratuitas disparadas contra o presidente, cujos hábitos sociais descreve como moderados. Não só defensores de Lula, mas também seus críticos, estranharam a reportagem.

Alberto Dines, editor-responsável deste Observatório, citado em artigo de Michael Astor, do jornal britânico The Independent [12/5/04], afirmou que, tecnicamente, ‘o artigo tem sérias falhas’, já que o hábito de beber de Lula não é de preocupação nacional. ‘A maioria das pessoas nem pensa nisso. Há um grupo de jornalistas em Brasília que brinca sobre isso e só.’ A matéria do Times, afirmou Dines, careceu de fontes e confiou cegamente em Leonel Brizola, ex-aliado político e atualmente inimigo do presidente, e no polêmico colunista Diogo Mainardi, da revista Veja.

O analista político Alexandre Barros concorda com Dines. Para ele, muito já foi dito sobre o hábito de beber de Lula em Brasília, mas o assunto não era notícia até o Times publicar sua reportagem. Na Folha de S. Paulo, o colunista Vinicius Torres Freire disse que o jornal nova-iorquino publicara um artigo baseado em fofocas. ‘Lula bebe e fuma… Se tivéssemos evidências factuais [de que o hábito atrapalha sua carreira de presidente], teríamos publicado.’

Catherine Mathis, porta-voz do Times, disse que o jornal sustenta a história. ‘Acreditamos que a reportagem foi bem apurada’, disse.

De sua parte, o gabinete do presidente reagiu furiosamente. Primeiro, negou o conteúdo da reportagem com profundo desgosto, acusando-a de ‘caluniosa e difamatória’. Lula, segundo reportagem de Michael Astor para a agência Associated Press [10/5], nunca escondeu seu gosto pelo álcool, aparecendo vez ou outra com um copo de cerveja ou uísque. Nunca, porém, foi pego bêbado em público.

O gabinete de Lula considera entrar com ação legal contra o jornal. Seria uma medida bem mais sensata do que cassar o visto temporário do correspondente, que é casado com uma brasileira no Rio de Janeiro e estava fora do Brasil quando toda a pendenga começou.

Estranhamentos mútuos

Um detalhe, aparentemente sutil, marcou a principal diferença que a mídia brasileira e a americana deram ao caso. No Brasil, os principais jornais e noticiários fizeram questão de lembrar o caso Jayson Blair, que abalou as estruturas do New York Times no ano passado, quando uma série de fraudes do ex-repórter foi descoberta e acarretou na demissão dos dois principais editores do jornal.

Do lado de lá, as notícias sobre o caso não deixaram de citar a origem humilde de Lula, bem como suas gafes com a língua portuguesa. Este elemento que não foi sequer considerado na mídia brasileira – e, de fato, não é uma informação relevante, mas preconceituosa por constar numa reportagem que questiona os hábitos de Lula e parece inferir que as alegações do Times têm algum fundamento, já que Lula vem da classe operária. Já o caso Jayson Blair, não foi considerado forte o suficiente para ser citado nas suítes que a mídia dos EUA deu à história. Detalhe no mínimo interessante.