Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Governo trôpego, mídia eufórica

Muito bem. Em matéria de liberdade de imprensa, somos todos autênticos paladinos. Tamanha unanimidade, porém, tem seu preço. Nada de evocar a burrice – trata-se de algo exponencialmente mais grave. A pauta da hora diz do supremo desafio de lidar com o desgoverno, que já há algum tempo se anuncia com todas as trombetas, pompas e circunstâncias.

Não é preciso ser um incurável pessimista, tampouco um renhido oposicionista, para constatar que o governo Luiz Inácio Lula da Silva faz água por todos os poros, com a honrosa exceção do pedaço comandado por Antônio Palocci e Henrique Meirelles, sem qualquer prejuízo para os que discordam da política econômica por eles tocada e sem descartar a possibilidade de a mesma naufragar.

Focar demasiadamente no episódio que resultou na crise – o artigo besta e incompetente do colega americano – é tapar o sol com a peneira. Melhor interpretá-lo na conta de um catalisador, fortuito, de um estado de coisas (ou de químicas) mais inflamável que o atual mercado do petróleo.

E é aí que o bicho pode pegar. Até que ponto nos distraímos perante o esfarelamento ora vigente no Palácio do Planalto, cujos pilares parecem sucumbir a uma horda de famélicos cupins?

Tereza Cruvinel (O Globo) digitou com precisão cirúrgica no sábado (15/5): sacando um intróito literário bem a contento, no qual não faltaram as lições básicas de Maquiavel, fez ver a seus leitores que o tal núcleo duro palaciano tem tal consistência devido única e exclusivamente à burrice. Ou à incompetência plena, se quisermos ser algo misericordiosos. Seus titulares, sem esquecer da exceção palocciana, bem ao contrário de transparecer consistência política, exibem a dureza da couraça de um rinoceronte alucinado – não bastasse a este a miopia de nascença, defeito que o expõe tão fatalmente à sanha dos caçadores, tanto que é titular absoluto do cadastro dos bichos em extinção.

José Dirceu, outrora poderoso, valentão e dado a bazófias, evolui na era pós-Waldomiro mais parecido com um galo cego de um olho em plena rinha, às voltas com seu adversário binocular. Frei Betto vaga feito um moralista e carente sacristão de igreja abandonada, a vender utopias e abstrações tipo o Fome Zero. Em matéria de tocar o expediente, portanto, jejua. Luiz Dulci se consome em digressões sobre o socialismo, viajando pois em maionese passada e rançosa. Quanto a Luiz Gushiken, já havia mostrado as manguinhas recentemente. Sua visão de comunicação e imprensa é stalinista e isto diz tudo.

Lula, portanto, está só. Suprema ironia, a incômoda circunstância traz à tona o patético bramido (‘Não me deixem só!’) de Fernando Collor, seu carrasco em 1989 (desnecessário lembrar que este se referia às ruas, não às entranhas da corte).

Vocação autofágica

Como lidar jornalisticamente com um presidente em tal contexto? A pergunta procede na medida que jornalistas, assim como os médicos, são escalados para situações emergenciais. Se estas dizem de riscos político-institucionais de primeiríssimo grau, especular sobre como haveremos de nos comportar daqui em diante é, no mínimo, um delicado e obrigatório exercício de futurologia.

Se não somos o mercado, que se antecipa aos fatos, nas reuniões de pauta nosso hoje é amanhã. Sem contar que sem o governo não somos nada, não importa se contra ou a favor.

Lula tem sérias limitações pessoais, eis aí um diagnóstico que vem se cristalizando muito antes da mixórdia do New York Times. Na verdade já o sabíamos bem antes da posse, mas o fato de somente agora pendurá-lo nas páginas quase diariamente dá bem a noção de quanto fomos indulgentes no embalo do salvacionismo que o içou a palácio.

Na atual conjuntura, convém conter a euforia e calibrar os ânimos. Seria de bom-tom abandonar de vez aquele papo de ‘ele é assim mesmo, por isso é melhor que os outros’. Entre outras funestas conseqüências dessa asneira o que se viu foi a associação do presidente às cachacinhas da vida, na tosca tentativa de assim identificá-lo mais ainda com o povão.

A propósito, o ministro Celso Amorim parece ser o mais convertido pela reza. No pobre episódio do jornalista americano abandonou prontamente a compostura de chancelaria e assumiu na maior a identidade de uma ruidosa e cafona personagem de salão de beleza do subúrbio, daquelas que dão ibope em novela das oito.

Também não vale bater em cachorro morto. Dar dignidade à avaliação pela qual Lula é limitado talvez signifique cobrar diária e vigorosamente que o mesmo sapeque uma boa lancetada no dito núcleo duro de burrice, drenando-o dos seus componentes.

Se a esquerda insiste em sua vocação autofágica, alertar o presidente para a iminência de ele mesmo virar churrasco em plena intimidade do expediente não fará de nenhum jornalista um reles chapa-branca.

De qualquer modo, imprensa vs. desgoverno é um embate prenhe de fortes emoções.

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Jornalista e médico