Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Grampolândia acaba quando acenderem as luzes

O governo está decidido a acabar com a divulgação abusiva de grampos, autorizados ou não. O governo vai quebrar a cara e ainda ficar com fama de autoritário.

A grampolândia – para usar a feliz alcunha criada pelo jornalista Fernando Rodrigues, um dos precursores do jornalismo fiteiro e hoje atilado comentarista político – não decorre do nível de corrupção, dos altos padrões da imprensa ou da disposição saneadora das autoridades [veja o artigo ‘Regras na grampolândia’, de F.R., na rubrica Entre Aspas desta edição].

Então, quais são os fatores que contribuíram para a criação e o extraordinário desenvolvimento do jornalismo fiteiro no território livre da grampolândia?

** Disponibilidade da imprensa para embarcar em aventuras a serviço de interesses contrariados.

** Ancestral confusão entre a busca da probidade e a improbidade dos meios para materializá-la.

** Sedução por parte da imprensa de ser protagonista do processo político auferindo os proveitos – inclusive materiais – oferecidos aos que abiscoitam alguma parcela do poder.

Na República da Grampolândia impera o vale-tudo. Esta é a sua marca mais visível. Os denunciadores de escândalos não são movidos por algum sentido moral ou cívico. Em geral igualam-se aos denunciados; a denúncia é apenas uma arma na guerra para impor-se aos desafetos.

Jogo das capas

Ao longo dos últimos oito anos em que o banqueiro Daniel Dantas assumiu o cetro da grampolândia muitos dos seus rivais, senão a maioria, dificilmente poderão ser apontados como modelos de integridade ou retidão.

Os políticos que recentemente começaram a vazar para a imprensa partes das investigações da CPI do Banestado não podem ser apontados como guardiões do erário e campeões da luta contra a corrupção. Se o fossem não teriam antecipado partes aparentemente insignificantes de um escândalo que envolve 30 bilhões de dólares. Não estão interessados em levar adiante os trabalhos da CPI. Querem apenas tirar uma casquinha antecipada, o resto que se dane.

Há uma inequívoca jogada política nessa sucessão de revelações – seja no caso da Kroll-Brasil Telecom, seja no caso dos presidentes do Banco Central e do Banco do Brasil. Estamos diante do segundo round de uma guerra de foice que começou com o Waldogate e, certamente, não vai parar aqui [veja abaixo remissão para o artigo ‘Predadores em ação’].

O interesse público, no caso, é apenas o pretexto bacana para um acerto de contas que começa no campo pessoal e estende-se até o ideológico. A grampolândia neste momento é uma terra-de-ninguém atravancada pelas moscas azuis – todas de boné vermelho – e exorbitada pelas moscas varejeiras da mídia predadora.

Quando o ouvidor da Folha de S.Paulo, Marcelo Beraba, apontou no domingo (1/8) a aberração contida na reportagem de capa da IstoÉ (edição nº 1.816, de 28/7/04), não chamava a atenção apenas para o desvio ético de um veículo que confunde matéria paga com informação jornalística e cujos pivôs são novamente o casal governador do Estado do Rio [veja a íntegra do texto do ombudsman na rubrica Voz dos Ouvidores desta edição].

O problema já não é o da empresa jornalística que está no vermelho e faz qualquer negócio para embolsar alguns caraminguás de governantes inescrupulosos. A capa do semanário, além de faturada para um cliente, faturava para outro o miolo com a revelação de um escândalo político. E na edição seguinte (nº 1.817, de 4/8/04), aumentou a dose para marcar o lançamento da nova fórmula jornalística: uma capa falsa promovia o lançamento de uma coleção de 12 CDs de música popular e, debaixo dela, a capa verdadeira forçava uma crise política de grandes proporções – a saída de Henrique Meirelles da presidência do Banco Central para agradar o esquema contra o ministro Antônio Palocci.

Qual das capas é a comercial?

Na sombra

Novamente aparecem aqueles que não se importam com a qualidade dos meios desde que os fins sejam atingidos. Para eles não importa se a imprensa – ou parte dela – esteja a serviço de interesses escusos, importa que as infrações sejam denunciadas.

A posição é defendida por gente muito bem-intencionada, mas não se sustenta moralmente. Se a denúncia está igualmente envolta em suspeitas, por que razão não é discutida abertamente? Que pudor é este que admite apenas uma parte das revelações e deixa a outra escondida, impune? Que imprensa é esta que esbanja audácia na revelação de comportamentos indignos na esfera política e não admite encarar as infrações da esfera jornalística?

Do atual festival de erros que envolve grampos e vazamentos de processos sigilosos, o governo certamente não poderia ausentar-se. E, como sempre, entrou em cena seduzido pela solução autoritária. Ao anunciar um anteprojeto de lei para coibir a divulgação do conteúdo de grampos telefônicos, o governo agarra-se ao recurso punitivo na ponta do processo e esquece o vasto conjunto de torneiras abertas do sistema judicial (e, no caso das CPIs, parlamentar) que tolera e até estimula os vazamentos. Assim como o agente corruptor é tão criminoso como o paciente corrompido, também o elemento vazador deve ser tão castigado quanto o objeto do vazamento.

A grampolândia é um território freqüentado pelos que detestam a transparência e adoram operar na sombra. A esta altura o governo já sabe quem abriu o bico e quem entregou a papelada secreta aos jornais e revistas. E se ainda não sabe é rigorosamente incompetente no tocante à sua própria segurança.

Ao invés de brandir ameaças de mordaças, mordaçinhas ou mordaçonas basta apenas acender as luzes. Inclusive dos porões. Então os predadores da imprensa aprenderão a jogar limpo.