Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Guerra de palavras pelo espólio da crise

A imprensa é um vasto campo de batalha na guerra que se trava pelo espólio da crise global. Enquanto as manchetes refletem a ciclotimia dos mercados, a parte da mídia que foi mais leniente com os abusos financeiros quer nos convencer agora que a recessão é inelutável.


É verdade que a crise de crédito contamina a economia real. Empresas estão em dificuldade, cortando gastos e adiando planos. Mas outra parte da economia, talvez a maior, toca a vida. As pessoas saem de casa para trabalhar. O agricultor planta, a indústria produz e o comércio vende. E os jornalistas escrevem.


Quem perdeu procura se recuperar. Quem está ameaçado busca se proteger. O governo brasileiro tem políticas e planos consistentes nas áreas monetária, de investimentos e social. Mas pouco se fala da economia que funciona e dos projetos que podem e devem ir adiante.


A grande epopéia deste momento está sendo protagonizada por milhões de pessoas que seguem trabalhando, investindo e criando para não deixar seus empregos, negócios e projetos desmancharem no ar. Mas quem não se esforçar para ir além da cobertura da mídia vai imaginar que essa gente não existe, que estamos todos tontos como os operadores das bolsas das fotos dos jornais e imagens da tevê, ora desesperados, ora eufóricos com as cotações financeiras.


Assim, a mídia pouco ajuda a compreender o presente e a responder às dúvidas sobre o mundo que surgirá daqui para frente.


Salvação da banca


Não se trata de adivinhar o futuro fugidio, mas de viver o mundo de amanhã mesmo, aquele no qual acordaremos depois da próxima noite, o mundo que está sendo moldado no calor da crise, no embate entre os que querem os mercados mais ou menos vigiados pela sociedade e, sobretudo, na definição de quem pagará a conta dos danos e quem ganhará com a recuperação da economia global.


O nosso ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, disse a O Globo que ‘se precisar, vai enfiar a faca’, referindo-se a cortes nos investimentos públicos e ao adiamento de programas sociais. Isso foi veiculado como remédio natural para os males da crise. Talvez não seja. Mas não há dúvida de que a conta, neste caso, seria paga em empregos e sacrifícios dos mais pobres.


É curioso observar que em outros lugares propõe-se exatamente o contrário, ou seja, salvar empregos e proteger os trabalhadores para evitar que a recessão se agrave.


A facada no social parece ser mais do mesmo catecismo que guiou o mundo para a crise. Os que defendem isso são os mesmos que acusam ‘a mão intervencionista do Estado’ de estar na origem de todo este caos, por desmontar e subverter os limites e controles que existiam no sistema financeiro americano e de outros países. E qual foi o resultado disso? Foi deixar ‘a mão invisível do mercado mais’ à vontade para multiplicar lucros sem lastro na realidade da economia.


Estes são também os mesmos que acusam agora os governos de ‘estatismo exacerbado’ porque decidiram comprar ações dos bancos, para evitar que a ruína deles seja a ruína de todos nós.


Ora, não existe a rigor, no capitalismo, conflito entre ‘mão do Estado’ e ‘mão do mercado’. A maior prova disso é esta megaoperação de salvação de bancos pelos governos de todo o mundo. O economista Robert Shiller, renomado especialista em crises financeiras, disse à Veja: ‘O envolvimento dos governos com a economia é uma questão de medida, não de absolutos’.


Farra das finanças


O Estado intervém sempre, mesmo quando não intervém. Deixar os mercados à vontade é uma das formas mais perversas de intervenção. Significa soltar os predadores para o banquete na sociedade. Primeiro se saciam com os mais fracos; depois partem para se devorar. Aí a bolha – ou a bomba – explode.


Muito mais que um embate de idéias, a guerra feroz pelos despojos da crise é uma guerra de interesses. É uma luta pelo controle. Quem vai controlar quem a partir de agora? Quem vai mandar mais e fazer o mundo ser de acordo com o que quer?


O que temos testemunhado nos últimos anos é a exacerbação do controle sobre os indivíduos e a sociedade e a absoluta leniência – inclusive de boa parte da mídia – com os mercados e o capital.


Vivemos sob um sistema capaz de saber tudo sobre cada um de nós, que nos vigia o tempo todo. Pense no que acontece se você deixar de pagar a conta do cartão de crédito ou se não declarar cem reais ao imposto de renda. Ao mesmo tempo, esse sistema fingia ignorar a farra irresponsável das finanças bilionárias.


Agora os governos estão tendo de pagar o maior resgate da história da Humanidade para evitar que a sociedade seja massacrada pela crise causada pela orgia financeira.


Ação política


As leis e os Estados são produções dos homens e de seus interesses. O que precisamos mais nesta hora é de ação política para evitar que os mesmos homens que nos levaram a esta crise mantenham o poder absoluto de antes, submetendo a sociedade aos mesmos interesses. Isso não significa necessariamente estatismo nem socialismo. Este é um falso dilema. O desafio da sociedade é restaurar o equilíbrio entre Estado e mercado.


Esta grande e urgente missão política é irmã de outra, igualmente desafiadora e imediata: não deixar o ministro Paulo Bernardo enfiar a faca no social.


Ao contrário, a crise deve nos animar a investir e trabalhar mais para que o mundo da próxima manhã seja melhor que este. O ministro sabe que a sustentabilidade da economia brasileira hoje vem de políticas econômicas responsáveis com a moeda e com o orçamento público. Mas o outro componente disso são as políticas de investimento, emprego, valorização dos salários e transferência de renda para os mais pobres. Uma coisa não é a negação da outra.


A contrapartida deste outro dilema enganoso é o desafio de pensar livre do medo e do terror do mesmo. Estão presentes hoje possibilidades poderosas de mudança, não só para vencer esta crise, mas também para construir um modo de vida que corresponda à extraordinária capacidade do homem de produzir mais com menos trabalho e menos capital. Em vez resultar na próxima bolha, isso pode e deve ser conduzido – pela ação política da sociedade – para a introdução de formas de vida e de padrões distributivos funcionais para os novos meios produtivos.


É muito, portanto, o que está em jogo na guerra de palavras pelo espólio da crise. Não cabe à mídia edulcorar a situação. Mas é desejável que, em vez de guiar a manada, ela ajude a sociedade a enxergar o caminho.

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Jornalista e escritor; Rio de Janeiro, RJ