Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Hora de soltar as gargantas

‘No mundo real o deep throat está saindo de cena.’ Quem escreveu isso na última edição da ex-independente IstoÉ (8/6, pág. 97) não foi um crítico de mídia ou politólogo. Foi o charmoso Dr. Mauro Marcelo de Lima e Silva, diretor-geral da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) ao deixar as sombras funcionais e encarar as luzes da ribalta política.

Nosso araponga-mor foi desmentido numa questão de horas pelo deputado Roberto Jefferson. Depois de um gargarejo ardido e depurador, o presidente do PTB desengasgou o gogó e fez de um jato o que Mark Felt, ‘o cara chamado de Garganta Profunda’, fez aos poucos naquela garagem subterrânea de Washington, 33 anos atrás.

Na longa entrevista que Jefferson concedeu à repórter Renata Lo Prete, da Folha de S.Paulo (6/6, págs A1, 4 e 5), o deputado revela a história do ‘mensalão’ que o PT teria pago aos deputados da base aliada no ano passado.

Por que abriu o bico? O que levou este profissional do poder a enfrentar o poder? No texto do nosso araponga-mor está dito com todas as letras que ‘o deep-throat é uma pessoa metida até a garganta em ilegalidades ou motivada por sentimentos pessoais de vingança’.

Jefferson, o nosso gargantinha, fez para a Folha o que havia prometido uma semana antes na matéria de capa da Veja (edição 1907, 1/6/05): se for levado ao banco dos réus três petistas sentarão junto com ele. Cumpriu o prometido com a precisão de um expert da Cosa Nostra.

Risco de ruína

Não há diferença entre o homem-bomba do PTB e os produtores do vídeo-bomba dos Correios. Mamaram nas tetas do erário e quando secaram ou foram oferecidas a outros, chiaram. Sob o ponto de vista dos procedimentos, a façanha da Folha é mais qualificada do que a da Veja, já que a denúncia do deputado – embora antecipada com estardalhaço – foi manifestada a uma jornalista e por ela elaborada. O feito do semanário deve-se aos empresários-realizadores do impecável vídeo.

Ambos prestam um enorme serviço à sociedade ao denunciar os respectivos escândalos com as estentóreas gargantas que o Todo Poderoso lhes concedeu. Mas nunca é demais lembrar, relembrar e repisar que a imprensa como defensora do interesse público não deve ser caudatária de interesses privados contrariados. Pode ficar respingada.

O que interessa nesta surpreendente e benéfica justaposição do Caso Watergate com o Caso Correios/PTB é o esforço visivelmente concatenado para desmoralizar Mark Felt e, ao mesmo tempo, desestimular um tsunami-denuncista na esfera pública brasileira.

O cândido texto do diretor-geral da Abin não deixa dúvidas; nele estão as impressões digitais de quem não está minimamente interessado na multiplicação de Gargantas Profundas ou Gargantas Rasas, Gargantas Roucas ou sequer Gargantas Sussurrantes.

No momento em que servidores públicos revoltados começarem a gargantear ou reportar – direta ou indiretamente – o que vêem ou sabem, a Esplanada dos Ministérios desmorona. Nem a Abin estaria a salvo do garganteio sufocado, diga-se, há pelo menos duas décadas.

Papel fiscalizador

É por isso que o Dr. Lima e Silva desqualifica Mark Felt ao considerá-lo ‘rotten apple’ (maçã podre) enquanto canta loas ao sistema de ‘delação premiada’. Fica evidente que detesta o cidadão-servidor que, por fidelidade à sua consciência, passa por cima dos compromissos profissionais com o Estado. O chefão da Inteligência prefere pagar ao delator-mercenário porque deste modo limita e controla o processo saneador.

Na ânsia de qualificar Felt como vilão e desqualificar as razões que o levaram a vazar as dicas para a dupla Woodward-Berenstein, o diretor da Abin esquece que um delator autônomo, ‘terceirizado’, chamado Pedro Collor desvendou para a imprensa o mar de lama do Esquema Collor.

Foi vingança? Foi. Pedro Collor era um delirante? Era. Se tivesse sido premiado com alguma boca livre teria ficado calado? Certamente. Mas graças a ele, às suas mágoas e ao seu gorgeio, o país livrou-se de uma perigosa gangue.

Na verdade, a Abin não quer que a imprensa desempenhe o papel fiscalizador que lhe cabe no sistema democrático. Não quer parceiros, quer filtrar e monitorar o que convém vir à tona. Em outras palavras: quer o monopólio das gargantas. Gargântua quer o silêncio.

Avaliações furadas

A imprensa brasileira não resiste à vocação caipira. Indispensável a picada venenosa e piadinha perversa. Na revelação da identidade do ‘Garganta Profunda’, grandes e pequenos tolos insistiram na bobagem a respeito do furo que a Vanity Fair teria dado no Washington Post.

Nem o jornal nem a dupla de repórteres (agora reunida depois de longa separação) estavam interessados em quebrar o pacto que mantinham há mais de três décadas.

Os engraçadinhos queriam que o sigilo da fonte fosse quebrado justamente por aqueles que juraram respeitá-lo? Este tipo de furo reclamado pela galera tupiniquim poria a perder um comportamento impecável.

Pior foram as piadinhas a respeito das motivações de Mark Felt para converter-se no ‘Garganta Profunda’. Se fosse uma vingança pessoal contra a Casa Branca o ex-nº 2 do FBI não esperaria tanto tempo para colher os louros. Se estivesse atrás de grana não conseguiria um tostão, porque justamente no auge do caso Watergate a imprensa americana começou a discutir abertamente o check-book journalism (o jornalismo do talão de cheques) que começava a proliferar e logo abortado.

Da onda de picuinhas contra Felt não escapou o seu idolatrado mentor, J. Edgar Hoover, descrito maliciosamente pelo craque Elio Gaspari (Globo & Folha, 5/6) como celibatário, agarrado às saias da ‘mamy’ e que ao longo dos anos passava os fins de semana com o mesmo amiguinho. E daí?