Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Hora de uma auto-regulamentação eficaz

A imagem de alcoólatra que o jornalista Larry Rohter desenhou, costurando elementos episódicos da vida de Lula, corresponde à verdade? Aceitemos que sim, apenas como breve pressuposto para continuarmos: tais ‘hábitos etílicos’ são de fato uma ‘preocupação nacional’? Ocorre, hoje, que uma ampla parcela da sociedade brasileira especule sobre alguma suposta ligação entre os insucessos do governo do PT e o uso excessivo de cachaça pelo chefe do Executivo nacional? É evidente que não. Mesmo sem colocar em dúvida a veracidade dos fatos e depoimentos colhidos pelo jornalista, a mensagem geral que ficou explícita no conteúdo da matéria veiculada no New York Times é falsa. Essa idéia – de causa e efeito – soa tão absurda ao cidadão brasileiro que poderia até passar por anedota, caso não fosse de algum modo danosa aos interesses do país no cenário internacional.

A população em geral e a oposição parecem concordar que os malogros freqüentes do governo Lula são provenientes de outros produtos que não aquele da cana-de-açúcar. Para constatar o fato bastou-se acompanhar a repercussão da matéria na mídia nacional durante a semana. A construção da figura de consumidor etílico inveterado, sem envolvimento com ‘grande parte do trabalho pesado’ e passivo diante das decisões de seus assessores, ancora-se basicamente em depoimentos de políticos e jornalistas que – sem colocar em dúvida sua credibilidade e competência – são, reconhecidamente, críticos históricos do Partido dos Trabalhadores. Ali, foi habilmente confeccionada uma colcha de retalhos contendo fatos isolados e depoimentos claramente tendenciosos, colhidos e dispostos inteligentemente, a propósito de tornar verossímil uma tese discriminatória, absurda e danosa.

Por que o jornalista não acrescentou ao texto o pensamento de outros interlocutores, divergentes daqueles que figuraram na matéria? Talvez para justificar essa ausência, facilmente observável apenas numa primeira leitura, disse: ‘Líderes e jornalistas comentam entre si mas evitam falar do assunto’. Na universidade se aprende que o jornalismo sério não se presta a generalizações, devendo esclarecer o leitor sobre as diferentes verdades que envolvem a notícia. Logo, quem são esses líderes e jornalistas? Pertencem a que universo? Quais são as particularidades do seu pensamento? Quem são e quais as idéias dos que discordam deles? Se o profissional não pode oferecer elementos mínimos que respondam a essas questões, cai no campo do abstracionismo ou do jornalismo de bandeira, por vezes, sem credibilidade.

Circunstância favorável

É verdade que o Brasil necessita de avanços significativos em muitas áreas, porém, já percorreu um importante caminho rumo à maturidade das suas instituições e classes. É fato que a consciência de cidadania do brasileiro tem melhorado bastante. E cresceu o suficiente – embora algum estrangeiro mal informado corra o risco de não perceber – para acreditar-se que mesmo se uma parte significativa da classe política resolvesse calar diante dessa suposta ameaça aos rumos do país, a grande imprensa nacional teria coragem de desvendar uma história de tal natureza, caso parecesse minimamente investida de realidade. A verdade é que os poucos políticos e jornalistas que sustentam essa sandice parecem ter cedido à tentação de dar ao PT o mesmo tipo de oposição que um dia dele receberam.

Agora, reflitamos: de um lado deparou-se com uma compreensão distorcida do que seja liberdade de imprensa. Houve falta de ética e total irresponsabilidade a partir da construção de um fato jornalístico inverídico e mal apurado. O governo brasileiro, de sua parte, saiu com uma reação aparentemente sem cálculo estratégico, impulsiva e tomada de paixão ufanista e atrasada. Além disso, foi uma atitude bastante contraditória para o governo de um partido que historicamente lutou pelas liberdades, e termina, estranhamente, por agir de modo sectário, baseando-se numa legislação do tempo da ditadura militar. A despeito da postura de Rohter, sua expulsão, inevitavelmente, arrepia a classe jornalística, tomando conotação de cerceamento do direito de expressão.

A matéria que poderia ter tido desdobramentos menores acabou amplificada. Roberto Cabrini noticiou no jornal de fim de noite da Band, dia 12 de maio, que 194 jornais ao redor do mundo repercutiram a notícia. A presidente da Associação de Correspondentes Estrangeiros no Brasil disse que o país seria incluído numa lista de Estados que limitam a liberdade de imprensa. Tudo justamente depois que Alain Touraine, sociólogo francês, em artigo publicado no suplemento Mais da Folha de S. Paulo no dia 9 de maio, disse que o presidente Lula deveria aproveitar a circunstância externa favorável, uma vez que contava com o apoio da opinião pública mundial. Em que medida ainda poderá contar?

O perigo real

O governo brasileiro, pelos mais diversos interlocutores que se pronunciaram durante a semana, nega ter atentado contra a liberdade de imprensa; antes, julga apenas ter punido um mau jornalista. A mídia nacional e mundial, entretanto, brada ferozmente, alertando para uma lista provável de precedentes e perigos que se colocaram com a atitude do presidente Lula. Em meio ao impasse, talvez fosse oportuno dizer: é justo que, pela peculiaridade de seu ofício, a imprensa – especialmente a brasileira, por motivos históricos – negue-se a concordar com qualquer tipo de retaliação externa à classe. Todavia, precisa oferecer à sociedade mecanismos de auto-regulamentação que realmente funcionem.

Os exemplos de atrocidades e injustiças cometidas em nome do sagrado e inviolável direito de comunicar ‘pipocam’ mundo afora. Aqui, o exemplo da Escola Base em Brasília serve para mostrar que a sociedade brasileira não pode ficar à mercê do mau jornalismo, apenas porque no passado a imprensa nacional sofreu de maneira duríssima com a censura imposta pelos militares. É preciso, lucidamente, saber distinguir as coisas, diferenciar o bom e o mau exercício da profissão. Compreende-se perfeitamente o arrepio na espinha de um jornalista que viveu essa realidade quando se depara com uma atitude como a tomada, agora, pelo governo Lula. Acontece, entretanto, que os jornalistas devem tomar para si a missão de criar mecanismos que efetivamente coíbam e punam severamente o mau exercício da profissão, ou estarão deixando espaço para que outros o façam à sua maneira.

Parece natural que o cidadão ou instituição vítima da má conduta jornalística procure defender-se ao seu modo, quando não há quem o faça condignamente. O perigo real, então, reside no somatório de elementos como distanciamento entre o universo das novas gerações e aquele dos fatos ocorridos durante o tempo de cerceamento no período militar, aumento indiscriminado da má conduta jornalística e instalação de um laissez-faire por parte da imprensa. A longo prazo, ocorrendo um arrefecimento da memória histórica e, mais importante, caso a classe jornalística não consiga impor-se como juiz competente nas questões que envolvam o exercício da sua atividade, outras instâncias da sociedade naturalmente o farão, e a partir de critérios próprios. Aí sim, a liberdade de imprensa estará verdadeiramente comprometida.

******

Estudante de Jornalismo da UFRN