Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Imprensa e o marketing de campanha

Quando o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP) vestiu, por sugestão de Duda Mendonça, o figurino do ‘Lulinha paz e amor’, a imprensa – a meu ver com razão – esforçou-se para denunciar a artificialidade da mudança. Afinal, após tantas eleições em que adotara uma retórica desafiadora e eventualmente agressiva, incluindo episódios de enfrentamento direto – como quando, em um debate, afirmara que Paulo Maluf era mesmo competente, mas porque competia, competia e nunca ganhava –, o candidato petista surgia repaginado, conciliador e de fala mansa para as eleições presidenciais de 2002.

Passaram-se oito anos. Agora é José Serra (PSDB-SP) quem, às vésperas de mais um período eleitoral, aparece de modelito novo. Na tentativa de se ‘vender’ como o pós-Lula – já que não é inteligente confrontar um governante que, mesmo ao final de seu segundo mandato, mantém índices de aprovação entre 70% e 82% –, o ex-governador paulista começa, de uma hora para outra, a elogiar publicamente e com frequência o atual presidente, o qual passara os últimos oito anos denegrindo.

Porém desta feita, ao contrário de seu comportamento em 2002, a ‘grande imprensa’, com raríssimas exceções, ostenta um silêncio tão sepulcral quanto epifânico em relação à súbita mudança no comportamento de um candidato à Presidência. Ao invés de desvelar o artificialismo de nova persona pública de Serra, como fizera com Lula oito anos atrás, prefere a anuência muda.

Dupla preocupação

Trata-se de uma constatação duplamente preocupante. Em primeiro lugar porque o artificialismo da pretensa metamorfose do candidato do PSDB em continuação de seu histórico adversário petista perpetua uma das operações de marketing político mais cínicas da história das eleições brasileiras.

É, ainda, ofensiva ao eleitorado brasileiro – o qual está sendo tratado como um ignorante político e um desmemoriado – e acaba por resultar, a um tempo, numa negação do próprio passado político-ideológico de Serra e numa desautorização pública da atuação de seu partido – que faz, há oito anos, cerrada oposição ao lulismo.

Ademais, como confirma o programa econômico do candidato peessedebista – que ‘vazou’ para a imprensa a semana passada –, dissimula em continuidade e unicidade o que é, na verdade, mudança de rumos e dissensão, ocultando dois projetos distintos para o país: um que prioriza a inclusão social, o fortalecimento do papel do Estado e, no âmbito das relações econômicas internacionais, a priorização dos blocos de comércio e da geopolítica Sul-Sul; outro, afeito ao neoliberalismo ortodoxo, ao corte de despesas e decorrente ‘enxugamento’ do Estado e, em termos de política externa, ao realinhamento automático com os EUA em detrimento do Mercosul.

Imprensa omissa

O segundo motivo para preocupação gerado pelo estratagema serrista é, como aventado, o papel da imprensa no episódio. Pois é certo que, no avançado estágio em que o marketing político se encontra, recorrendo rotineiramente a um arsenal de dados e de técnicas que incluem pesquisas qualitativas e quantitativas, projeções e concepção do produto – no caso, o candidato –, as campanhas eleitorais acabam por dar à luz uma criatura largamente caudatária de narrativas fantasiosas e de imagens projetadas. Que é assim inserida no circuito de comunicação e de espetáculo de que nos fala Guy Debord. Na democracia, cabe à imprensa cumprir o seu papel e desmistificar tais construções imagéticas.

O ‘Lulinha paz e amor’ de 2002 esteve submetido a dinâmica similar à acima descrita. Acontece, porém, por um lado, que o então candidato não forçou a barra e não se apresentou como a continuidade de Fernando Henrique Cardoso – mesmo porque, com os índices de aprovação do ex-presidente, seria um péssimo negócio. Por outro lado, como o atual presidente acabou, pelo bem ou pelo mal, por encarnar o personagem e integrá-lo ao seu modo de fazer política – num aggiornamento do ‘homem cordial’ de Sérgio Buarque de Holanda, uma vez mais revelador de sua pervasividade –, acabou por conferir legitimidade ao que era inicialmente um mero estratagema de marketing.

Mas talvez o aspecto mais importante a sublinhar no episódio seja constatar que, por ter a imprensa, desde o primeiro momento, agido de forma a desconstruir tal estratégia eleitoral, acabou pondo a nu o marketing da candidatura. Assim, antes que a imagem por este projetada se incorporasse ao imaginário coletivo, a ‘suavização’ de Lula, escancarada como um constructo pela mídia, tornou-se motivo de chiste e de gozação popular. Se a tal imaginário veio a se incorporar às vésperas da eleição, foi já como paródia de si mesma.

A mídia atual, ao se recusar a cumprir semelhante papel desmistificador em relação a Serra, preferindo a dissimulação como forma de apoiar o candidato que, agora já de forma articulada e indisfarçável – porém não assumida – escolheu, acaba por se tornar cúmplice de uma pantomima ofensiva à verdadeira democracia. Pois esta implica a exposição e debate de diferentes posições e projetos para o país.

Ao fazê-lo, a imprensa se torna menos legítima, mais anacrônica e, em meio a sua maior crise, se enfraquece ainda mais como instituição mediadora entre poder e sociedade.

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Jornalista e cineasta, é doutorando em Comunicação pela UFF; seu blog