Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Imprensa ignora diversidade ideológica

A imprensa ignorou a organização do movimento de entidades sindicais, partidos de esquerda e movimentos sociais pela reestatização da Companhia Vale do Rio Doce. Com exceção de dois artigos na Folha de S.Paulo e de uma referência do Globo a uma declaração do presidente Lula da Silva em entrevista coletiva para emissoras de rádio – quando disse que o tema não é parte de suas preocupações –, o assunto praticamente não existiu para a mídia até o final da semana, quando as revistas de informação e os jornais noticiaram as manifestações que ocorreram por todo o país.

O movimento partiu da ala chamada ‘progressista’ da igreja católica, que escolheu a privatização da Vale, ocorrida em 1997, como tema do ‘Grito dos Excluídos’ deste ano. O plebiscito, apenas consultivo, foi preparado para acontecer em cerca de 3 mil comunidades entre os dias 1º e 7 de setembro. A organização e os debates aconteceram longe dos olhos da mídia, com exceção de uma ou outra manifestação, como algumas denúncias de violência contra manifestantes.

Interesse público

À parte os méritos da demanda que vicejou na asa esquerda da nossa nave ideológica, a indiferença da mídia é mais um sintoma de que ela julga superadas as questões relacionadas ao papel do Estado na economia. Como se considerasse tabu tratar de mudanças no sistema econômico – no sentido que dão à palavra ‘tabu’ certas sociedades primitivas, nas quais se crê que o próprio enunciado de uma expressão faz com que ela adquira corpo físico e se torne real.

Tabus e dogmas constituem o universo da fé e são também características de certo primitivismo, que tanto pode marcar aqueles que não alcançaram o estágio cultural além da visão mitológica do mundo, como os que, considerando superados os conflitos ideológicos, aceitam como real o fim da História. Diante de temas que ameaçam recolocar na mesa o debate sobre a natureza do sistema econômico e sua relação com o Estado, a imprensa costuma se comportar como o mulá para quem a história começa e termina no ano 600.

Considere-se o aspecto revisionista do movimento pela reestatização da Vale do Rio Doce. Questione-se, mesmo, sua representatividade e a constitucionalidade da demanda que os militantes apresentam. Ainda assim, a questão colocada, e que merecia ser levada à opinião pública, trata do tipo de nação que pretendemos construir e que está se consolidando, com ou sem uma estratégia concertada com a sociedade, no atual processo de estabilidade com crescimento econômico.

Também se coloca aos observadores a possibilidade de analisar a capacidade da chamada esquerda de se recompor após a política de alianças heterodoxas do PT no poder e das lambanças de alguns de seus dirigentes com as finanças de campanha.

Sejam os militantes um bando de visionários sem qualquer noção de realidade, sejam eles um fator a ser ponderado no espectro de escolhas que o país deve considerar, não cabe à imprensa amputar as possibilidades do debate. Pelo menos sob o conceito de uma imprensa de interesse público, o ideal é que seus operadores se abstenham de limitar o rol de assuntos que a sociedade pode ou não considerar.

Atitude de equilíbrio

A Vale do Rio Doce não voltará a se incorporar ao patrimônio do Estado pelo fato de militantes do Movimento dos Sem-Terra acamparem na Esplanada dos Ministérios. O presidente da República declarou claramente que o assunto ‘não está nem estará’ sobre sua mesa. Mas a questão do tamanho do Estado está sempre na pauta da imprensa por outro viés: sempre que o governo anuncia investimentos em programas sociais, a mídia, em peso, prioriza a opinião dos porta-vozes dessa nebulosa a que se convencionou chamar liberalismo.

Na semana passada, quando o Executivo incorporou ao projeto de orçamento para 2008 a possibilidade de contratar alguns milhares de servidores federais, em parte para substituir funcionários terceirizados que ocupam cargos estratégicos, a grita foi geral.

Pelo fato de haver nascido no sindicalismo, o Partido dos Trabalhadores tende claramente a se fechar em ambientes corporativos. Sabe-se que a diversidade na composição do primeiro governo Lula da Silva deveu-se exclusivamente à vontade do próprio presidente, que foi buscar fora do partido um ou dois ministros e outros auxiliares cuja ação se revelou essencial para os resultados econômicos e sociais que o Brasil vem alcançando. A vigilância da imprensa tem sido importante para evitar que o governo seja uma réplica dos estatutos do PT, que, com toda sua variedade de tendências, continua sendo predominantemente um partido de sindicalistas.

Mas a imprensa só se manterá relevante nesse papel se adotar uma atitude de equilíbrio, abrindo-se para debates mais abrangentes e sem temer que a exposição ao contraditório venha a favorecer opiniões com as quais não concorda. Até agora, por exemplo, os leitores não sabem como o governo pretende usar os recursos previstos para os gastos com pessoal.

Espaço de expressão

Pode ser que Lula esteja querendo aumentar o tamanho do Estado para reforçar suas bases eleitorais para 2010. Mas pode ser que o Estado necessite mesmo de mais músculos para administrar e operar seu ambicioso plano de crescimento, que em grande parte ainda está no papel.

Se a imprensa não admitir o debate mais amplo sobre temas que são propostos por organizações que não se alinham aos preceitos do chamado liberalismo, acabará se alienando de uma parte da realidade brasileira.

Queira ou não queira a mídia, também existe inteligência na faixa esquerda do espectro ideológico. A realidade brasileira é feita dessa diversidade e é preciso dar espaço para que ela se expresse.

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Jornalista