Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Imprensa livre. Imprensa boa?

O ministro Franklin Martins, em declarações enviadas da Europa, levantou uma excelente questão ao afirmar que a imprensa brasileira ‘é livre, o que não quer dizer que é boa’.


Com o poder de síntese de um experimentado jornalista, hoje convertido a contragosto em observador da mídia, o ministro conseguiu, em poucas palavras, compactar uma questão fundamental: a inexistência do clássico aparato censório é suficiente para colocar o selo de qualidade na imprensa de determinada sociedade?


Dito de outra forma: se os censores trocaram os uniformes militares para vestir a toga ou a batina ou o blazer corporativo, isso é suficiente para garantir que a imprensa é livre?


A dialética nos obriga a buscar o corolário: se a imprensa funciona livre de pressões ou de constrangimentos, ipso facto é boa porque é diversificada, plural.


Terceiro elemento


A grande verdade é que a nossa imprensa não é nem livre nem boa. Este é o maior mérito da provocação de Franklin Martins. Nossa imprensa foi duramente ameaçada pelo chefe do poder Executivo antes do primeiro turno e, aparentemente em represália, adotou algumas vezes um comportamento libertino.


Agora, no início da segunda volta, agarra-se histérica e farisaicamente à questão do aborto, esquecida do perigo de alimentar o fanatismo religioso, o clericalismo e o seu natural desaguadouro – o Estado teocrático, qualquer que seja a religião que o controle.


A liberdade e a qualidade da imprensa se sobrepõem e se associam quando um jornal como o centenário Estado de S.Paulo afasta uma colaboradora – a psicanalista Maria Rita Kehl – porque ousou divergir das suas premissas políticas. Se o jornal abre mão de um dos seus mais importantes atributos – o equilíbrio de conteúdo –, deixa de respeitar a liberdade e os paradigmas que o qualificam.


A verdade é que faltou ao ministro um terceiro elemento para compor a sua equação: a quantidade. Nossa imprensa não é livre, não é boa e está sendo tragicamente reduzida.


Para lembrar


Quando, em 1985, Boris Casoy perguntou a Fernando Henrique Cardoso, então candidato a prefeito de São Paulo, se acreditava em Deus e o então senador titubeou, o apresentador de TV não buscava a liberdade nem a qualidade da informação.


Num país democrático, ser religioso ou agnóstico é rigorosamente irrelevante. A pergunta foi preconceituosa e intolerante – exemplo clássico e inesquecível do pior tipo de jornalismo.


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Debate farisaico


Alberto Dines # reproduzido do Diário de S.Paulo, 10/10/2010


Este debate sobre o aborto é falso, dissimulado, hipócrita. Mascara uma questão de grande relevância e encobre um problema institucional que está no cerne da nossa fragilidade republicana. Dilma Rousseff, José Serra e Marina Silva manifestaram-se sobre a interrupção da gravidez de forma semelhante ao longo do primeiro turno e todos na esfera do ‘respeito à vida’ que tanto agrada ao feixe de confissões religiosas cristãs.


O problema do aborto diz respeito à saúde pública, sobretudo em países dominados pela corrupção e pelo desapego às leis onde vale o ‘vale tudo’. Descriminalizado ou não, o aborto continua sendo praticado aberta e impunemente na vasta rede informal de atendimento médico.


O que deve sair imediatamente do debate eleitoral é esta fingida religiosidade que leva Deus aos palanques, macula as mais íntimas opções espirituais do eleitor e abala gravemente os fundamentos da nossa democracia – teoricamente isonômica, tolerante, aberta, inclusive aos agnósticos, descrentes e ateus.


Teocracia cega


O secularismo, intrinsecamente ligado ao ideal democrático e republicano, foi seriamente comprometido quando em 2008 o presidente Lula, acompanhado pela candidata in pectore Dilma Rousseff, encontrou-se com o Papa Bento 16 na Santa Sé e assinou uma Concordata que tentou manter secreta, depois minimizou e, em seguida, foi obrigado formalizar. Este foi o pecado original aceito pelas confissões da cepa luterana, certas de que teriam suas compensações. E tiveram: a enxurrada de concessões de emissoras de rádio e TV que distorcem e comprometem o equilíbrio do sistema brasileiro de radiodifusão.


Não obstante, a sociedade brasileira novamente avança em direção ao espírito de Guerra Santa justo às vésperas do feriado nacional de 12 de outubro, data da padroeira do Brasil. Em outras ocasiões produziram-se confrontos que não honram nossa temperança e capacidade de convivência.


Diante do explosivo coquetel composto por altas doses de fanatismo político-eleitoral e igual quantidade de fervor religioso, não nos resta outra alternativa senão a de encarar, proclamar e empreender uma imperiosa e inadiável marcha rumo ao Estado laico. Esta é questão que deveria ser levada aos candidatos e discutida abertamente por eles.


Religião é assunto de foro íntimo, tirá-la desta condição superior para colocá-la no horário eleitoral é desrespeitá-la no que tem de mais elevado. Quando a crença converte-se em clericalismo, a etapa seguinte é a teocracia avassaladora, cega, tirânica. Não há outra opção, o mundo islâmico está aí para comprová-lo, apesar das exceções na Turquia e Líbano.


Grande demais


Israel vai na mesma direção, a despeito da ojeriza inicial da maioria dos religiosos judeus em aceitar um Estado que não fosse criado por ação do Messias. Cercado de inimigos, isolado pela intransigência em admitir a convivência com um Estado palestino, Israel enfrenta neste momento uma grave crise doméstica produzida pela coalizão da direita com os religiosos que pretende obrigar os que desejam obter a cidadania israelense a jurar fidelidade a um ‘Estado judaico e democrático’.


Se judaísmo for definido como cultura ou civilização, tudo bem, mas no caso é religião e um estado religioso não pode ser democrático.


O ‘parceiro estratégico’ do governo brasileiro, Nicolas Sarkozy, pretendendo ser fiel às tradições seculares do republicanismo francês, não vacilou e proibiu o uso pessoal de símbolos religiosos em locais públicos (burka islâmica, kipá judaica e crucifixos ostensivos).


Medida extrema, antipática, incontornável. Deus é grande demais para ser enfiado num míssil nuclear. Ou enlatado pelo marketing político.


 


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