Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Imprensa usa Melissa para blindar Lula

A imprensa tem todo o direito de criticar um presidente que, no auge da crise, foge de coletivas e explicações, e depois de driblar todos os repórteres brasileiros que o perseguiam na França, decide falar apenas a uma jornalista desconhecida. Mas o episódio da entrevista de Lula à videojornalista Melissa Monteiro mostra que a tal ‘blindagem’ que cerca o Planalto começa na própria atitude compassiva da mídia diante da imagem do presidente. Enquanto o chefe da nação nivelava o PT aos outros partidos políticos, esfarelando de vez o histórico da legenda, boa parte dos nossos colunistas preferiu gastar suas linhas para massacrar a repórter que conduzia a entrevista.

Falou-se de tudo: Melissa foi destituída do posto de jornalista e qualificada como patricinha perdida e desastrada, ‘bonitinha, gostosinha até’, no comentário rude de um festejado colunista. Muitos criticaram a profissional por aparecer manuseando a câmera, mostrando que ignoram a nova vertente do videojornalismo. Porém, o descuido da repórter ao chamar o presidente de ‘você’ foi o que convenceu seus detratores: depois disso, a entrevista, obviamente, não poderia ser levada a sério. Falou-se muito, mas quase não se tocou na espantosa declaração do presidente, a única coisa que deveria merecer atenção, a esta altura do campeonato.

Furo histórico

Para uma imprensa que há semanas assiste à derrocada da cúpula palaciana, supostamente a nata do PT, e de forma inacreditável ainda hesita em imputar qualquer responsabilidade ao presidente, a frase de Lula afirmando que ‘o que o PT fez do ponto de vista eleitoral é o que é feito no Brasil sistematicamente’ é um soco no estômago. Melissa deixou seus colegas mordidos com o furo jornalístico, mas sua entrevista incomoda mesmo porque evidencia como é delirante a cobertura pautada na hipótese de que o presidente governa dentro de uma bolha, imune ao seu próprio governo. Não há uma só pergunta açucarada de Melissa que seja mais indulgente com o presidente do que a fantástica presunção de que ele nada sabia, ou pior, de que isso de alguma maneira o redime.

A condução branda da entrevista em plena borrasca política irritou a classe, mas a frase de Lula está lá, e no fim das contas, é o que deveria importar. Desde que os escândalos pipocaram, é o material com a maior carga simbólica para esclarecer a real dimensão da crise, e deixa claro que discutir o que Lula sabia não é mais importante do que ele pensa sobre o assunto.

Ao focar a crítica na repórter, desmerecendo o conteúdo da entrevista, boa parte a imprensa acabou usando a própria Melissa para, mais uma vez, blindar o presidente de sua própria declaração. Depois de tomar o maior furo da recente história política do país de um deputado federal, a imprensa deveria se preocupar primeiro em saber o que aconteceu em Brasília nos últimos dois anos, e o que fazer com frase histórica de Lula, para depois então se preocupar com pronomes de tratamento.

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Jornalista