Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Índices de uma realidade alarmante

Primeiro, o covarde e espancamento de uma doméstica por membros da classe média barra-tijucana no Rio de Janeiro; quase ao mesmo tempo, a agressão gratuita de um gari por um ‘astro’ em ascensão de novela; em São Paulo, a morte por espancamento do índio Ijehederi Karajái, ao tentar ajudar um amigo, também índio, que apanhava; na Zona Sul do Rio, ‘jovens artistas ofendem mulheres em suas letras, copiando estilo inaugurado por rappers e funkeiros’ (O Globo, ‘megazine’, 10/7/2007). É a ‘pitmúsica’: ‘Mulher é tudo puta/ mas que um barro sujo/ também faz parte da luta’. E assim por diante.

É viável a suspeita de que os casos acima, isoladamente noticiados pela imprensa, possam ser realmente índices de um distúrbio ético-social da vida brasileira, assentado na violência em suas diferentes formas de exercício. ‘Índice’ é, no caso, um termo acadêmico, velho conhecido dos scholars da semiótica. Para Peirce, um dos expoentes do pragmatismo norte-americano no século 19, trata-se de um dos três tipos de signos possíveis, ao lado do ícone (referente ao funcionamento da imagem) e do símbolo (domínio dos sistemas lingüísticos predominantes no discurso cotidiano).

Significante e referência

É de Peirce a explicação: ‘Vejo um homem com um andar balançado, o que é provavelmente uma indicação de que se trata de um marinheiro. Vejo um homem de pernas algo curvadas, com calças de brim, polainas e jaquetas. São provavelmente indicações de que é um cavaleiro ou algo parecido. Um relógio de sol, ou um relógio qualquer indicam a hora do dia (…) Umas batidinhas numa porta fechada são um índice. Qualquer coisa que atraia a atenção é um índice. Qualquer coisa que nos sobressalte é um índice, enquanto marca a articulação entre duas partes de uma experiência. Assim, um tremendo barulho indica que algo considerável aconteceu, embora não saibamos exatamente de que se trata, mas pode ser provável que possamos ligá-lo a outra experiência. (…) Um barômetro com marcas baixas, conjuntamente com a umidade do ar, é um índice de chuva próxima…’

Com variados exemplos dessa ordem, o pensador pragmatista explicita a natureza do índice que, para ele, é ‘um signo, ou representação, referente a seu objeto não tanto por causa de qualquer semelhança ou analogia com ele, nem porque esteja associado com as características gerais que o dito objeto possa ter, e sim porque está em conexão dinâmica (incluindo a conexão espacial) com o objeto individual, por um lado, e com os sentidos ou a memória da pessoa para quem serve como signo, por outro’. Assim, para responder a uma pergunta do tipo ‘onde está o incêndio?’, o indivíduo recorre a um índice que consiste em apontar para o fogo com o dedo, estabelecendo uma conexão dinâmica entre o dedo e o incêndio. Está aí implicado um laço existencial, que funciona por contigüidade, entre o significante e a referência. O índice complementa de algum modo o objeto que o determina, a ele conectando-se por extensão física.

Filme para pais e professores

Um maior desenvolvimento do assunto se encontra em As Estratégias Sensíveis – afeto, mídia e política (M. Sodré, Ed. Vozes, 2006), mas a explanação acima é suficiente para encaminhar a suspeita inicial de que há uma conexão latente entre os acontecimentos citados. Na mesma edição do dia 10/7, O Globo resumia, em página normalmente dedicada à política, os dados de uma pesquisa sobre criminalidade no país, na qual jovens superam os mais velhos em números de encarceramento. O que os ‘acontecimentos-índices’ permitem inferir é a persistência do velho problema de inserção do adolescente na sociedade global adulta. Só que, agora, agravado, do lado ‘periférico’, pelo desemprego, pela falta de horizontes sociais, pela atração do tráfico de drogas; do lado da classe média, pelo paternalismo indiferente dos genitores, pela cultura também indiferente do entretenimento e, igualmente, o círculo das drogas.

Para Felipe Joffily, diretor de Ódiquê?, filme sobre jovens cariocas oscilantes entre a malandragem e a marginalidade, ‘com o que vem saindo na imprensa e com o filme, não é só com negro e favelado que as pessoas vão atravessar a rua. É com esses caras também. Pensa só: é muito mais fácil para quatro playboys zanzarem pela Zona Sul fazendo besteira, traficando armas, por exemplo, do que para quatro negros. E eles se aproveitam disso constantemente:é a carteirada do pai, um suborno’ (‘Megazine’, 10/7). O filme seria, assim, ‘para pais e professores, para saberem com quem estão lidando’.

É bom pensar

Como se vê, os ‘índices’ peirceanos deveriam ser mais pesquisados por pais e educadores comprometidos com aquilo que Hans Jonas, pensador alemão, chamou de ‘ética de futuro’, ou seja, a responsabilidade para com as gerações que seguem ou que virão. Quando um indivíduo compõe algo como ‘Eu não sou cafetão de puta pobre, eu sô playsson stronda, morador de bairro nobre’ (o autor mora na Zona Sul do Rio), anunciado como ‘filosofia de vida de um playsson’, ou faz de ‘cadela’ sinônimo de mulher, é preciso haver alguém que lhe aponte a violência moral, indutiva de violência física, de sua ‘gracinha’.

Se pais, educadores e animadores de festa se omitem, talvez a tarefa possa recair sobre a imprensa responsável. Sobre esta, entretanto, recaem também suspeitas, a exemplo da levantada pelo colunista Elio Gaspari: por que os jornais chamam de ‘jovens’ os agressores da Zona Sul, enquanto na Zona Norte toda e qualquer idade recebe o epíteto de bandido? É bom começarmos a pensar.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro