Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Indução à loucura

‘And the people bowed and prayed to the neon god they’d made.’ (Paul Simon, The Sounds of Silence)

Na edição do Domingo de Páscoa, 16 de abril, o jornal O Globo trouxe como manchete principal: ‘Metade dos cariocas deixaria o Rio por medo da violência’. Fonte: pesquisa de opinião realizada por uma empresa privada, Instituto Brasileiro de Pesquisa Social (IBPS), não se sabe patrocinada por quem, ‘que ouviu 2.482 pessoas com mais de 16 anos na Região Metropolitana e em 17 municípios do interior (…) entre os dias 5 e 11’ daquele mês.

Ainda no texto da primeira página, porém, fica patente a falácia da pretensa pesquisa: as entrevistas haviam sido realizadas por telefone. Ora, mais de 40% dos domicílios da cidade do Rio de Janeiro não têm telefone fixo, e na Região Metropolitana essa proporção é de quase 50%; portanto, a amostra, ainda que alegadamente ‘estratificada por critérios de sexo, idade e local de residência’, não era de forma alguma representativa da população ‘carioca’, mas apenas – se tanto – de uma parcela dessa população, social e economicamente diferenciada. Não por acaso, a parcela que se convencionou chamar de ‘classe média’ (a ‘classe alta’ não sai atendendo telefonemas a torto e a direito, para isso existem as secretárias eletrônicas e biológicas).

Assim como é a classe média que escreve cartas-de-leitor. Já no dia seguinte o Globo publicou três delas comentando a ‘notícia’. Uma criticando os supostos trânsfugas, outra os apoiando – mas a terceira era particularmente significativa. Afirma o leitor (residente no Rio e, soube-se depois, no Leblon): ‘Os 49% que ainda querem ficar devem ser formados por bandidos, assassinos, marginais, traficantes, ladrões de toda espécie, mendigos, população de rua, políticos corruptos, beneficiários de cheque-cidadão, Bolsa Família, grevistas permanentes e ociosos em geral’. Seria leviano responsabilizar a ‘notícia’ pelo surto psicótico do leitor. Parece indubitável contudo que, no mínimo, o estimulou a dar vazão a seu ódio generalizado e insensato.

Poder-se-ia alegar que o episódio se esgota em si mesmo. Mas as coisas não funcionam – e não são feitas para funcionarem – assim. Até hoje há quem repita convictamente, até mesmo pela imprensa, que o Itamaraty suprimiu a prova de inglês de seu teste de admissão, ou que o natimorto Conselho Federal de Jornalismo encheria as redações de censores. Ambas balelas, mas que foram cuidadosamente trabalhadas e divulgadas para, através da repetição, adquirirem valor de verdades incontestes, técnica de resto nada nova.

Em 21 de abril, o próprio Globo publicou artigo de Alba Zaluar, Antonio Ponce de Leon e Mario Monteiro desmontando a farsa metodológica da tal pesquisa do ‘êxodo’. Não foi manchete, não ganhou destaque, não ensejou um pedido formal de desculpas da direção do jornal a seus leitores (pois sim…) ou sequer, nos dias subseqüentes, a publicação de uma única carta-de-leitor que fosse. Não obstante, no dia seguinte um dos articulistas regulares do jornal, na mesma página de Opinião, citou a pesquisa emprestando-lhe fumaças de dado confiável.

Não duvido que, na blogosfera, o espaço virtual que se tornou em grande parte o locus do neo-udenismo tonitroante, o mesmo tenha acontecido e continue a acontecer. Lembram-se da pobre capivara da Lagoa, arrancada à força de seu habitat adotivo e levada a ferros para o Zoológico de Niterói, onde a submeteram às mais cruéis sevícias? Tampouco o episódio pode ser descartado como ‘fato isolado’, mero exemplo de mau jornalismo leviano e sensacionalista. É também isso, mas acima de tudo é exemplar de como se molda a ‘opinião pública’ e se a conduz para longe da razão.

Rara serendipidade

De saída, obtém-se, de preferência de segunda mão, um ‘fato’ bombástico, que se preste ao espalhafato; se ecoar e ampliar sentimentos irracionais de segmentos selecionados da população, melhor ainda. Em seguida, repórteres são enviados à rua, ‘pré-pautados’ para obterem, de pessoas procuradas a dedo e com as quais o público-alvo do veículo se identifique, depoimentos que referendem o ‘fato’. E, para fechar o circuito e não deixar espaço à reflexão, são procurados ‘especialistas’ que comentem o ‘fato’ como se fato fosse.

Assim foi feito na matéria do Globo de 16 de abril, a qual abre com o testemunho de uma securitária de 42 anos, mãe de duas meninas e residente em Copacabana, que ‘já foi assaltada, à mão armada, em ônibus e dentro de restaurante’ e ‘também foi vítima duas vezes de grupos de menores de rua’. Segue-se a ‘fala do trono’ de Geraldo Tadeu Moreira Monteiro, diretor-presidente do IBPS (embora, ressalte-se, a repórter tenha tido a integridade, ou cometido a temeridade, de mencionar que ‘96% das pessoas não foram vítimas de nenhum crime, segundo a pesquisa’). E, claro, vem em seguida a exegese do cientista político, que de novo não questiona o suposto dado.

Na página seguinte, mais dois depoentes. Um, de 25 anos, morador do Catete, diz que ‘já presenciou dois arrastões, em ônibus e na praia’. Outra, e esta é a jóia da coroa, também de 25 anos, moradora da Barra da Tijuca e trabalhando em Copacabana, que teria ‘sofrido sete assaltos no carro’ e ‘sido vítima de assalto à mão armada no Centro’. Curiosamente, a infortunada jovem fora ‘também entrevistada para a pesquisa’. Ou bem se trata de caso de rara serendipidade, encontrar uma entrevistada fortuitamente numa probabilidade de menos de 1 em 5.000, ou bem o IBPS revelou a identidade dos entrevistados, coisa que é anátema entre institutos de pesquisa sérios.

Insensatez programada

Convém notar os locais de residência: nenhum dos ‘cariocas’ ouvidos é morador da periferia. Nem por isso há por que duvidar aprioristicamente da veracidade dos depoimentos individuais. O que é inaceitável é o escancarado viés da matéria; por que não entrevistar também algum dos 96% que ‘não foram vítimas’, ou um especialista que questionasse a confiabilidade do suposto dado?

Porque atenuaria o impacto, diluiria a espetaculosidade, e sobretudo introduziria uma possível área cinza no alto-contraste preto-e-branco do ‘pensamento único’.

E é por esse ângulo que o episódio deve ser visto.

Ao pensamento único, para o ser, não basta ser hegemônico; tem que ser excludente. Não apenas de outros pensamentos: do próprio pensar. Parafraseando Aldous Huxley, ‘se o indivíduo pensa, a estrutura de poder fica tensa’. Na verdade, na sociedade administrada não pode haver indivíduo. Apenas a massa disforme, cujo universo cognitivo e intelectivo é, de alto a baixo, subministrado pelos detentores do poder social.

Essa, e nenhuma outra, é, num sistema de dominação, a função da ‘mídia’: induzir o espírito de manada, o não-pensar, o abrir mão da razão e aderir entusiasticamente à insensatez programada pelos que puxam os cordões.

Linha auxiliar

Nesse processo o principal indutor é o ‘Sistema Globo’, que o falecido Paulo Francis, antes de capitular, apropriadamente crismou como ‘Metástase’, pois de fato suas toxinas se espalham por todo o tecido social; e seus carros-chefe, que freqüentemente se realimentam reciprocamente, são o jornal impresso como no caso e, principalmente, o Jornal Nacional, meticulosamente pautado ‘de [William] Bonner para Homer [Simpson]’ (cf. Laurindo Lalo Leal Filho, Carta Capital, 7/12/05, http://www.cartacapital.com.br/index.php?funcao=exibirMateria&id_materia=3590) [ver remissões abaixo], que de segunda a sábado despeja ideologia mal travestida de notícia sobre dezenas de milhões de incautos. E o que ‘deu’ no Jornal Nacional ‘pauta’ desde as editorias dos jornais impressos, o Globo por cima e o Extra por baixo, e das revistas, ‘da casa’ ou de uma ‘concorrência’ cujo único objetivo é ser ainda mais sensacionalista e leviana, até os papos de botequim.

Os demais noticiários e sucedâneos do Sistema Globo fazem a linha auxiliar, ‘repercutindo’ ora o JN ora o jornal impresso. No caso da pesquisa do ‘êxodo’, na segunda-feira, 17 de abril, o mesmo diretor-presidente do IBPS foi entrevistado no RJ-TV e de novo deitou falação, não mais sobre a pesquisa em si mas sim sobre o ‘fenômeno’ que a mesma teria ‘mostrado’ (http://rjtv.globo.com/RJTV/0,19125,VRV0-3119-162210-20060417-529,00.html).

Um escárnio

Os outros instrumentos de espetaculosidade complementam o processo, impondo suas versões de pseudo-realidade: o Fantástico, ersatz dominical do JN; as novelas ‘campeãs de audiência’, com seus ‘conflitos’ descarnados e suas ‘causas sociais’ oportunisticamente selecionadas como desconversa; e, culminando, o Big Brother Brasil, a celebração máxima da total vacuidade.

Processo análogo vem sendo usado, há mais de uma década, para esvaziar e despolitizar a política, reduzindo-a às futricas de bastidores, ao ‘em off’ e aos ‘papos de cafezinho’; e, em época eleitoral, à corrida de cavalões das pesquisas de intenção de voto que ocupam as manchetes, o noticiário, as colunas – ah, as colunas! – e até mesmo a discussão supostamente acadêmica. A não menos velha desconversa nacional: olha todo mundo pra cá, e pela minha lente, para que ninguém olhe pra lá.

Falar-se em ‘opinião pública’, no Brasil de hoje, é um escárnio. ‘Opinião’ pressupõe um espaço interno, em cada indivíduo, para reflexão, ponderação, crítica e elaboração, não controlado pelo poder social. ‘Pública’ requer que exista uma esfera pública, de discurso racional entre iguais, aberto ao contraditório e não subordinado aos ditames do ‘mercado’ ou subministrado de fio a pavio pelo braço ‘midiático’ do mesmo poder. Nem uma nem outra condição pode existir em ambiente que subjuga ‘corações e mentes’ e os induz sistemática e deliberadamente à loucura social.

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Economista