Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornal Pessoal, 22 anos

O Jornal Pessoal completa nesta edição 22 anos. Tornou-se o mais duradouro periódico da imprensa alternativa brasileira, na véspera de chegar a 450 números. Sofreu duas interrupções nesse período, mas por pouco tempo. Em ambas, tentei pôr um fim nele. Não consegui. Desde 1992 o jornal não sofreu qualquer hiato e até lançou edições extras, quando a conjuntura exigiu. Sobre seu significado, a palavra é do distinto leitor. Divido com ele, nesta data significativa para mim (coincide com meus 60 anos), duas reflexões.

A primeira delas: ainda há sentido em manter este jornal? Ele ainda merece continuar a circular? Atende a necessidades não satisfeitas do leitor ou é apenas uma opção a mais de leitura que ele tem, ociosa ou supérflua? Já está na hora de encerrar a sua carreira ou ainda tem importância para a formação da opinião pública?

A outra reflexão: sem a perseguição judicial desencadeada a partir de 1992, com um saldo de 33 processos, 13 deles ainda ativos, o jornal continuaria a existir? Ou, dito de outra forma: foi a perseguição dos meus adversários e inimigos através do judiciário que me obrigou a manter o jornal, como uma questão de honra, um compromisso com a boa moral coletiva?

Pequeno e duradouro

A primeira ordem de perguntas, eu as transfiro ao leitor, a fonte autorizada a respondê-las. Já o segundo questionamento me diz respeito. Aprofundá-lo tem sido uma fonte de angústia para mim. Certamente o Jornal Pessoal teria sucumbido se não tivesse que reagir à evidente manobra para matá-lo, embutida nos processos judiciais. Sobreviver se tornou uma questão vital. Também uma afirmação da dignidade pessoal e da verdade.

A moral que resultaria da extinção deste jornal sob a balança viciada da justiça seria muito ruim para a causa pública. Pelo contrário, a resistência demonstra – para quem ainda está disposto a ver e aprender – que os poderosos podem muito, mas não tudo; que não é preciso ter poder equivalente ao deles (ou simplesmente nem é preciso ter poder algum) nem usar seus métodos para entestá-los. Ainda que não se consiga vencer, prova-se que o combate é possível. E vale a pena travá-lo, mesmo que o preço a pagar seja muito alto.

Se tal moral for extraída da sua existência, este pequeno e já duradouro Jornal Pessoal terá direito a achar que sua missão foi cumprida.

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A condenação de Hélio Gueiros

O Diário do Pará silenciou por completo a respeito. Já O Liberal deu chamada na capa e meia página interna da sua edição do dia 8, com uma caricatura em tamanho grande do personagem. A omissão do primeiro e a ênfase do segundo tiveram o mesmo objeto: a condenação de Hélio Gueiros por improbidade administrativa, na primeira instância da justiça federal do Pará. Ele perdeu seus direitos políticos e terá que pagar multa de 24 mil reais por aplicação irregular ou indevida de recursos do fundo partidário destinados ao PFL (hoje Democratas), do qual era então presidente no Estado. Também ficará proibido de contratar com o poder público e receber benefícios ou incentivos fiscais e creditícios, direta ou indiretamente, pelo prazo de cinco anos.

A ação foi proposta pelo Ministério Público Federal e acolhida pelo juiz Ruy Dias de Souza Filho. O MPF utilizou na denúncia os documentos dos processos nos quais tanto a justiça eleitoral quanto o Tribunal de Contas da União rejeitaram a prestação de contas do Partido da Frente Liberal. Elas abrangiam de despesas não autorizadas a gastos sem comprovação ou com notas fiscais rasuradas e com prazo de validade vencido.

A omissão do Diário diante de um fato tão grave se explica: Hélio Gueiros se reconciliou com Jader Barbalho e hoje é um dos seus liderados no PMDB. Gueiros foi sucessor de Jader no governo do Estado, em 1987, mas os dois romperam antes do final do mandato. Hélio apoiou a candidatura do ex-prefeito de Belém Sahid Xerfan, nomeado por Jader para esse cargo, no qual permaneceu até 1985, quando foi substituído cirurgicamente pelo então governador, que colocou no cargo o ex-secretário de saúde do coronel Alacid Nunes, Almir Gabriel. Apesar do uso ostensivo da máquina oficial, Jader derrotou Xerfan, em 1990. Foi uma das campanhas eleitorais mais violentas dos anos recentes. Jader e Hélio trocaram acusações pesadas.

Primeiro atrito

O Liberal se tornou a caixa de ressonância dos ataques a Jader Barbalho, acusando-o principalmente de enriquecimento ilícito e desvio de recursos públicos em benefício pessoal. Hélio Gueiros rompeu com Romulo Maiorana, pai, do qual era amigo e com quem trabalhava, como um dos redatores da principal coluna do jornal, o Repórter 70. Hélio sabia que Romulo apoiaria os candidatos do PDS (o partido do regime militar, que sucedeu a Arena) ao governo (o empresário Oziel Carneiro) e ao senado (o coronel Jarbas Passarinho). Como também era candidato ao senado, não só se incorporou definitivamente à oposição (que contava com a adesão do governador Alacid Nunes, rompido com o governo federal para não apoiar Passarinho) como passou a atacar o amigo e sua família. Revelou detalhes íntimos da atividade empresarial e política de Romulo e também atacou sua vida privada, não poupando sequer sua esposa, Déa.

Jader se elegeu governador pela primeira vez, Hélio conseguiu a vaga do senado e a antiga relação com o dono do grupo Liberal foi restabelecida, mantendo-se até a sua morte, em abril de 1986. A partir daí a convivência de Hélio Gueiros com os herdeiros de Romulo dependeu dos seus interesses políticos e comerciais. Sem a intimidade que havia com o fundador do império de comunicações e com os desgastes da litigância de 1982, nunca inteiramente superados, a aliança do grupo Liberal com Gueiros dependia da retribuição que ele desse ao apoio recebido. Teria que pagar para continuar a merecer a cobertura dos veículos da corporação.

Gueiros pôde pagar a conta e, com isso, adiar uma eventual retaliação: depois de ter sido senador, na volta à carreira política, interrompida pela cassação durante o regime militar, foi governador do Estado e prefeito de Belém. Com abundantes verbas publicitárias, o erário manteve seus elevados índices de aprovação no jornal e nas emissoras de televisão e rádio dos Maiorana. Fiel ao seu estilo, porém, ao sair da prefeitura, em 1996 (seu último cargo político, em virtude da fracassada tentativa, feita logo depois, de voltar ao senado), Hélio Gueiros deixou muitas contas pendentes para seu sucessor, o adversário Edmilson Rodrigues, do PT. O passivo de um milhão de reais de restos a pagar ao grupo Liberal causou o primeiro atrito entre o novo alcaide e os Maiorana, que só não levou a uma guerra aberta porque o erário logo contemporizou as diferenças.

Fim da história

O episódio revelou que, por trás do entendimento entre Gueiros e os Maiorana, oneroso para os cofres públicos, havia uma mal acomodada desconfiança, que, mais cedo ou mais tarde, conforme as circunstâncias, evoluiria para um novo acerto de contas. Aos 82 anos, é pouco provável que Hélio Mota Gueiros ainda consiga conquistar algum cargo político, que lhe devolva a condição de ordenador de despesas, com poder sobre a destinação de verbas de publicidade.

O poder que lhe resta é a página semanal que Jader Barbalho voltou a lhe reservar no Diário do Pará, depois de um período de privação (ou provação). Nela, conforme a vontade do padrinho, poderá ainda cometer alguma retaliação ou dano, graças ao seu estilo de jornalismo, forjado no próprio O Liberal, quando instrumento de combate do PSD (Partido Social Democrático), de Magalhães Barata. Mas não muita, nem de maior alcance. A chamada da primeira página e a destacada matéria interna do dia 8 podem ter sido a oportunidade para a segunda geração dos Maiorana declarar que a história de Hélio Gueiros acabou, ao menos nos veículos do império das comunicações. O ex-prefeito nada disse em sua coluna: nem sobre a condenação nem sobre a matéria dos seus ex-amigos. Deve ter repetido para seus botões uma frase com a qual ficou famoso: e eu choro? O choro cabe mesmo é ao povo, que paga a conta.

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Sinal

O maior anunciante – disparado – da edição do dia 10 de O Liberal veiculou nada menos do que oito peças publicitárias, ocupando no total três páginas e meia das 56 com as quais o jornal circulou. Todos os anunciantes eram do próprio grupo Liberal: rádio, televisão e jornal. Talvez tenha sido uma proporção recorde. Ou por falta de anunciantes para valer, que pagam, ou por necessidade de promoção dos veículos.

Como diria um teólogo: sinal dos tempos.

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A nova classe nova: sujeira na República

A reportagem de Consuelo Dieguez (Sérgio Rosa e o mundo dos fundos) no último número (35) de Piauí foi a melhor que já li nessa revista e das melhores que li em muitos anos na imprensa brasileira. Em seis páginas de um texto fluente como o de um bom thriller, Consuelo mostra que os representantes dos trabalhadores chegaram tão próximo da corrupção empresarial que passaram a chafurdar nela, como, talvez, em nenhum outro país do mundo. Formaram a ‘nova classe nova’, se me permite um acréscimo adjetivado a classificação dada pelo sociólogo Francisco de Oliveira, do alto da sua dignidade nordestina de 75 anos, em falta no topo do poder republicano, ocupado por um nordestino que já foi amigo e objeto de admiração de Chico de Oliveira.

A ‘nova classe’, na definição do iugoslavo Milovan Djilas, herege do socialismo real, era a burocracia, que assumiu o poder com a revolução socialista. Devia promover a libertação da classe operária, oprimida pelos donos do capital, e acabou se aboletando no aparelho de Estado. Criou uma nova forma de opressão política, freqüentemente mais tirânica do que a anterior. Já a ‘nova classe nova’ se aproveita do poder político, que lhe coube por exercício eventual, dentro da democracia, para exercer o mando econômico, com direito a lucros e dividendos.

Abusos diários

O personagem principal da reportagem é Sérgio Rosa, presidente do fundo de pensão Previ, que tem 166 mil associados, funcionários da ativa ou aposentados do Banco do Brasil, com participação em 70 empresas e patrimônio de 90 bilhões de reais. Ao lado de Rosa há outros presidentes de fundos de estatais. Embaixo e, sobretudo, acima deles, uma legião de sindicalistas, técnicos, políticos e um enxame de personagens sem cor definida e ofício certo, mas a caminho de se tornarem empresários – além desta tradicional categoria, é claro. Só nas empresas onde têm participação (o rol inclui a Vale do Rio Doce, a Oi, a Brasil Foods e a Embraer, das maiores do país), os fundos podem nomear 285 conselheiros, com direito a belos jetons e invejáveis mordomias.

Todos os personagens gravitam em torno da ‘maior disputa societária do capitalismo brasileiro’, segundo um desses atores, o ex-ministro Luis Gushiken: a privatização da maior das empresas telefônicas, a disputa pelo seu controle acionário e, finalmente, o processo que, resultando da fusão de duas empresas, gerou a maior corporação da telefonia brasileira, a Oi. As tramas relatadas pela repórter de Piauí não ficam a dever a nada disponível atualmente na história do Brasil – ou na sua mais rocambolesca ficção. Quem seguir com atenção a narrativa de Consuelo endossará o veredicto de Chico de Oliveira: a história ‘é muito mais prosaica, banal e triste’ do que sugere o noticiário da imprensa. Tira o disfarce de muita gente que se esconde por trás de discursos ideológicos e políticos. ‘Toda essa briga está acontecendo porque há muito dinheiro e m uito poder em jogo’, define o sociólogo, que rompeu com o PT e se desiludiu da política.

Consuelo nos presenteou com um ensaio exuberante: texto primoroso e informações essenciais. Agora, deve nos dar um livro sobre o tema. As indefesas vítimas das tropelias da Oi pedem, exigem. Vítimas de abusos diários, não partilham a certeza que levou o presidente Lula a favorecer a Andrade Gutierrez e a Telemar, comandadas por Sérgio Andrade e Carlos Jereissati (irmão do senador classificado de cangaceiro de m… pelo também senador nordestino Renan Calheiros, expert na matéria), as donas plenipotenciárias da Oi – e de muita biografia na república petista.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)