Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Jornalismo planejado funciona melhor

Planejar o jornalismo é exercitar a consciência de que esse ofício é, antes de tudo, um compromisso dos jornalistas com seus leitores, ouvintes ou telespectadores. Que eles estão em primeiro lugar e que suas necessidades e interesses serão respeitados. O planejamento é o momento em que se estabelece o conceito das publicações em sintonia com essas necessidades e os jornalistas amarram seu fazer ao cumprimento das metas e do compromisso definido com os leitores (vamos chamar assim todos esses cidadãos que têm direito à comunicação).


Planejar também é saber que a qualidade do jornalismo entregue ao cidadão usuário tem que ser checada e aferida periodicamente, pois desvios, voluntários ou não, podem causar danos irreversíveis à qualidade editorial e perda de leitores ou de audiência.


Em muitas publicações online ou impressas, em programas de TV e de rádio, percebe-se falta de amarração conceitual sobre o direcionamento editorial e a relação com o leitor. É comum, ao navegar por sites jornalísticos ou folhear publicações impressas e ler notícias, matérias, reportagens, artigos, notas, seções, o leitor ficar desnorteado com a confusão. As perguntas são inevitáveis: qual a intenção ao publicar isso? Com quem esses jornalistas estão tentando se comunicar?


Há redações que não têm uma missão para sua publicação e que param pouco para discutir os caminhos que estão trilhando, para quem estão escrevendo e para analisar a qualidade do jornalismo que entregam aos leitores. Impera um pragmatismo excessivo, marcado pela ausência de objetivos claros e de controle de qualidade no processo editorial. É comum entre os jornalistas haver uma baixa sintonia a respeito da missão e dos objetivos de sua publicação junto aos leitores. A ausência de planejamento editorial resulta na falta de orientação clara para os envolvidos e em risco constante de desvios de foco.


Quando os jornalistas organizam as ideias


A busca da qualidade editorial, base do sucesso de uma publicação, pede uma sistemática de planejamento que envolva todos os jornalistas na discussão dos seus caminhos editoriais. É nesse contexto que vamos tratar do plano editorial, um instrumento básico para planejar e monitorar a qualidade editorial de publicações.


A principal função de um plano editorial é organizar o pensamento de todos os envolvidos sobre uma publicação, seja ela impressa, online, televisiva ou radiofônica. O plano editorial tem os seguintes pressupostos:


** Representa a visão da redação sobre a publicação e sua relação com o leitor.


** Deve ser alterado de acordo com as necessidades de uma realidade mutante.


** Serve de insumo formal da redação para o plano de negócios.


** Deve ser refeito no mínimo anualmente.


** É negociado entre a redação e a direção da empresa, no caso de redações que se reportam a outros níveis hierárquicos dentro de empresas, e assim se torna a bússola da publicação.


A estrutura básica do plano editorial é composta dos seguintes pontos: missão, objetivos, o leitor, cenário, histórico da publicação, fórmula editorial e ações. Esses pontos estão indissoluvelmente ligados entre si e cada um leva ao desenvolvimento do seguinte. O conjunto é o plano editorial que expressa o pensamento organizado sobre uma publicação. Pode-se utilizar o plano editorial para criar uma nova publicação ou para administrar publicações existentes.


No início da atividade de planejamento editorial os planos editoriais produzidos podem ter qualidade bastante desigual, pois os jornalistas ainda estarão habituando-se a pensar e discutir seu fazer e isso leva algum tempo. A qualidade de um plano editorial também depende muito do envolvimento e da liderança da direção da redação – verdadeiro condutor do planejamento editorial. A qualidade do plano deixa claro quanto essa liderança está envolvida e comprometida com o processo.


A história escrita


Para as publicações que já têm uma história de vida, o plano editorial é iniciado com a construção de um histórico editorial que proporciona aos jornalistas a visão da publicação como um processo e registra o que aconteceu desde o início. É um resgate da memória que obriga os jornalistas a refletir sobre a vida da publicação e as diversas fases por que passou.


Para escrever o histórico de publicações mais antigas é preciso fazer verdadeiras reportagens para recuperar o passado, com pesquisas e entrevistas com profissionais que por ali passaram. Quando se tem um bom histórico por escrito, cada novo profissional que chega à redação tem à mão um texto que o informa sobre a trajetória percorrida até aquele momento e permite a ele atuar consciente de que a publicação é fruto de um processo e de um relacionamento mutante com os leitores, que, por sua vez, também são mutantes na sociedade em contínuo desenvolvimento.


Conhecer melhor o leitor


Uma etapa importante na realização do plano é o desenho do leitor que a equipe de redação deve elaborar. Esse é um exercício para organizar a visão que os jornalistas têm sobre os seus leitores baseada na experiência e na intuição, sem a ajuda de pesquisas. O objetivo dessa prática é afinar os jornalistas para focar um leitor único. Elabora-se uma relação de pelo menos 20 características de comportamento, atitudes e valores que se imaginam serem atributos do leitor da publicação. Por meio desse conjunto de características busca-se construir uma imagem orgânica e coerente do leitor projetado.


Quando o resultado desse processo é o desenho de um leitor que pode quase ser visualizado em carne e osso, este é um sinal de que é boa a percepção do leitor pela equipe. Há casos em que o perfil resultante mostra uma mistura mal feita de ingredientes, desenha um leitor que soa falso, e isso pode ser um sinal de que a redação entende mal quem é o seu leitor. Nesse caso é preciso repetir o exercício até que a equipe chegue a uma visão coerente. Quando uma redação não consegue essa visão depois de várias tentativas, isso pode indicar falta de foco da publicação que se examina ou cuja ideia se planeja.


Depois de construído o perfil intuitivo do leitor, é preciso identificar quais são suas necessidades e como a publicação se propõe atendê-las, além de ver quais são as tendências percebidas nesses leitores e como a redação está se comunicando ou vai se comunicar com eles.


Como vai a vida lá fora


Nessa discussão a equipe identifica e registra o que está acontecendo nos cenários mundial e brasileiro, sob a ótica temática da publicação. Isso permite situar os leitores nos cenários e analisar as possíveis implicações e impactos em suas vidas. Proporciona uma visão dinâmica do país e do mundo, da inserção dos leitores nesse panorama e como a publicação pode atuar atendendo necessidades desses leitores, muitas vezes antecipando-se a eles.


Com o grande aumento da velocidade das informações, das mudanças tecnológicas e a presença imponente da internet, o cenário tende a ser cada dia mais mutante. As publicações online precisam ser avaliadas com mais frequência. Para isso é indicado que a redação promova encontros sistemáticos para discutir cenário, suas mudanças e tendências. O que permitirá avaliar com mais rapidez quais os impactos das transformações do cenário, na publicação e em seus leitores e como a publicação deve responder editorialmente às mudanças contínuas.


O que a publicação quer ser na vida


A missão de uma publicação é sua identidade, é a razão de sua existência. Se uma publicação não tem uma missão por escrito, cada jornalista da equipe tem o direito de imaginar uma missão para ela. Isso pode dar origem a muitos desencontros editoriais e à falta de foco no leitor almejado. A missão de uma publicação deve ser objeto de acordo e envolvimento de todos da equipe.


A tarefa de estabelecer a missão de uma publicação é trabalhosa. Boa parte dos jornalistas está pouco habituada a discutir conceitos sobre seu trabalho diário. Assim, durante uma primeira rodada para se fazer um plano editorial, pode-se chegar a uma missão muito longa, cheia de adjetivos, advérbios e gerúndios. Quando isso acontece é bom rever a redação do texto. Uma boa missão é concisa, precisa e construída com substantivos e verbos. Cada palavra utilizada na missão deve ter um significado claro que se transforme em objetivo da publicação. Cada missão deve ser burilada e melhorada até que haja consenso na equipe. É um trabalho às vezes demorado, mas no qual vale a pena investir, pois todo o desenvolvimento do plano editorial depende de uma boa missão. Pode também acontecer que uma missão considerada pronta pela equipe seja totalmente modificada durante as discussões.


Um bom exercício a ser feito com uma publicação que tem uma missão estabelecida e que tenta se pautar por ela é analisar a publicação que está no ar ou impressa levando em conta quatro pontos:


1. A boa definição e a clareza da missão escrita.


2. Até que ponto a edição ou programa ou site analisado corresponde à missão e atende a ela.


3. Quanto a fórmula editorial, ou seja, a pauta, o equilíbrio de matérias e seções, noticiário, reportagem, imagens, sustenta a missão da publicação.


4. Se o design, projeto gráfico e a produção da publicação são condizentes com a intenção editorial expressa na missão.


Se a missão está clara e bem enunciada, cada palavra de seu texto desencadeia um objetivo no plano editorial. Objetivos são os pontos que sustentam a missão e permitem que ela se realize. Cada objetivo tem a função de detalhar um dos compromissos da missão e encaminhar a sua viabilização. É importante assegurar que a realização do conjunto de objetivos resulte no cumprimento da missão.


Quando temos uma boa missão, objetivos bem amarrados a ela e um desenho claro do leitor que se deseja atingir, já se sabe o que a publicação quer ser na vida. Então é preciso partir para a prática e estruturar a fórmula editorial e as ações para realizá-la.


Uma boa fórmula e mão na massa


A fórmula editorial é a receita da publicação e deve ser a materialização da missão e dos objetivos dessa publicação. Seus ingredientes variam de acordo com a natureza do veículo para o qual o plano editorial está sendo feito. O ponto básico, onde tudo começa, é a estrutura física que marca os limites de espaço ou tempo da publicação, seja o número de páginas de uma publicação online ou de uma revista ou jornal impressos, ou o tempo, no caso de programas de rádio ou de televisão.


Detalham-se os tópicos do conteúdo jornalístico da publicação, cada um deles com seu conceito resumido. O projeto gráfico também deve ter ali seus conceitos básicos delineados e explicitada a ligação entre a identidade visual e as seções de conteúdo.


A seguir devem ser registradas todas as ações necessárias para a execução da fórmula editorial. Cada ação deve ser acompanhada de seu custo, duração e prazo para realização.


De posse de uma fórmula editorial bem estruturada, equilibrada e harmônica pode-se lançar uma publicação com boa chance de sucesso. Do contrário, a probabilidade de dar cabeçadas é grande. A história de lançamentos de publicações que não foram aceitas e fecharam rápido é abundante em bons exemplos. A análise de um portfólio de fracassos (os lançamentos que não deram certo) pode ser muito rica nesse sentido.


A importante revisão anual


A revisão anual do plano editorial de uma publicação tem a função de analisar a qualidade editorial da publicação que está sendo entregue aos leitores e as questões internas da redação. Essa revisão avalia também a relação direta entre a qualidade da publicação e a qualidade dos profissionais que a fazem. Ao analisar a qualidade da publicação, a redação revisa o seu trabalho e identifica os pontos fortes e fracos de seu desempenho. A partir daí estabelece os caminhos para melhorar ainda mais os pontos fortes e eliminar os pontos fracos.


São discutidos pontos como imagem, foco no leitor, identidade, pauta, reportagem, texto, edição, correção gramatical, fotografia, ilustração, imagem, projeto visual, fluxo de produção, monitoramento da qualidade. A análise cobre todas as etapas do processo de produção jornalística e editorial da publicação. Dessa discussão surgem as oportunidades e os riscos a que está sujeita a publicação. E as soluções para aproveitar as oportunidades e minimizar os riscos.


A análise aborda as necessidades da redação em relação a seus profissionais, uma visão do quadro salarial, do plano de carreiras dos jornalistas, designers e fotógrafos e sua relação com as necessidades práticas da redação. São identificadas as necessidades de treinamento e desenvolvimento da equipe. Isso permite montar um plano de desenvolvimento de profissionais. Em prazo mais longo, possibilita estabelecer a relação direta entre qualidade da publicação e o desenvolvimento dos profissionais que a fazem.


Fluxo de trabalho, informática, administração e controle de custos são temas práticos que influem diretamente na qualidade da publicação. A discussão torna mais clara a relação entre qualidade editorial e custos; trabalha-se a dinâmica entre tecnologia e fluxo redacional.


Esse encadeamento de raciocínios constitui um conjunto orgânico da atividade editorial e operacional para fazer a publicação. Pede aos jornalistas que passem seu radar pelo mundo e pelo Brasil, que revisem sua relação com os leitores, que critiquem sua publicação e que apontem caminhos para melhorar. Propicia uma análise consistente da publicação, de seus jornalistas e de suas necessidades. E desemboca nas ações necessárias para levar a publicação a bom termo nos próximos tempos.


Planejar é um aprendizado contínuo


É bom que o planejamento editorial se realize no segundo semestre e que sejam estabelecidas metas para o ano seguinte. O formato básico do plano editorial é sempre o mesmo, mas deve-se dar ênfase no tratamento às questões mais importantes do momento, principalmente a pontos fracos como, por exemplo, foco no leitor, projeto gráfico envelhecido, problemas de pauta, reportagem, texto e edição.


O processo se inicia com reuniões entre os jornalistas para discutir a publicação, a qualidade do jornalismo que está sendo praticado e os tópicos do plano editorial. O envolvimento de toda a redação é muito importante. O chefe de redação, de posse do material produzido nos encontros com a equipe, escreve o plano editorial, que depois será revisto pela equipe e discutido com a direção da empresa, no caso de a redação estar inserida em uma empresa. Depois de negociado com essa direção, ele se transforma na bússola da redação e dos rumos da publicação.


O processo de planejamento editorial é uma atividade contínua que se aperfeiçoa com o tempo. Na fase inicial pode-se levar um tempo maior para discutir a missão da publicação. Quando ela já está clara e bem definida o tempo pode ser usado de forma mais equilibrada. A discussão do plano editorial depende do grau de maturidade da equipe, da qualidade do material apresentado e da saúde da publicação. Uma publicação com problemas pede uma discussão aberta e direta desses problemas nas reuniões do plano editorial.


Com o tempo, os jornalistas se habituam ao planejamento editorial. Muitos passam a contar com esse momento importante no calendário da redação para uma sintonia fina em torno do leitor e da publicação. Pensar o seu fazer vai se tornando uma atividade familiar aos jornalistas. Há um importante crescimento desses profissionais durante o processo.


A atividade de planejamento editorial não é apreciada unanimemente pelos jornalistas. Alguns preferem continuar atuando de forma pragmática. Mas para quem já experimentou a atividade de estruturar um plano editorial é difícil pensar a atividade jornalística sem a ancoragem sólida em um bom planejamento.


Para saber mais:


Manual de Jornalismo da Radiobrás (2006, pdf)


Plano editorial da Agência Brasil (2006, pdf)


Plano editorial da Voz do Brasil (2004, pdf)


Plano editorial da Rádio Nacional da Amazônia (2004, pdf)

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Jornalista, ex-secretário editorial e diretor de desenvolvimento editorial da Abril e ex-assessor da presidência da Radiobrás