Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Lições do jornalismo de insinuação

Esses dias de crise política têm exacerbado uma prática que já existia no moderno jornalismo brasileiro mas nem sempre de forma tão explícita. Ilimar Franco, repórter de política e colunista de O Globo, apropriadamente a identificou como ‘jornalismo de insinuação’.

Os exemplos se sucedem tanto na mídia impressa como na eletrônica – e inclusive nos blogs. Um dos mais recentes é de responsabilidade do jornalismo do mesmo grupo multimídia, as Organizações Globo: a revista Época e o Jornal Nacional, da Rede Globo.

Na mesma sexta-feira (12/8) em que começava a circular a edição 378 da Época – que trazia na capa foto do ex-deputado Valdemar Costa Neto, o carimbo de ‘Exclusivo’, o título ‘A Confissão’ e, em subtítulo, a afirmação ‘Lula sabia do acordo de R$ 10 milhões com o PL’ – o presidente da República fez pronunciamento transmitido ao vivo pela TV, no qual afirmava: ‘Quero dizer a vocês, com toda a franqueza, eu me sinto traído. Traído por práticas inaceitáveis das quais nunca tive conhecimento’.

O presidente não explicitou quais as ‘práticas inaceitáveis’ das quais nunca teve conhecimento. Época, por outro lado, baseada na entrevista do presidente do Partido Libera, abriu sua matéria de seis páginas com o título afirmativo de página inteira: ‘Lula sabia’.

Ainda naquela sexta-feira, a mesma matéria foi destaque nos telejornais da Rede Globo, especialmente no Jornal Nacional, no qual uma das manchetes foi ‘o Presidente e o vice-presidente, José Alencar, sabiam das negociações’.

Mas, afinal, do que o presidente sabia (ou não sabia)?

De acordo com a entrevista da Época – também reproduzida no Jornal da Globo do dia 12 e novamente no Jornal Nacional, do dia 13 – o presidente Lula ‘estava na sala ao lado’ do quarto onde José Dirceu, Delúbio Soares e o próprio Costa Neto travaram negociações para a participação do PL na chapa do então candidato Lula.

Em nenhum momento da entrevista publicada, Valdemar Costa Neto afirma que o presidente Lula sabia da origem ou do futuro do dinheiro que pagaria o acordo. Aliás, nem poderia saber porque a origem ilícita só ficará clara para o próprio entrevistado em fevereiro de 2003, e a reunião que serve de base à entrevista ocorreu em junho de 2002.

Ao contrário do que insinuam Época, o Jornal Nacional e o Jornal da Globo, na entrevista, Costa Neto se restringe a afirmar que o presidente sabia que as negociações em torno do fechamento do acordo político entre PT e PL envolviam dinheiro. E nada mais.

Pergunta a revista: ‘Lula sabia que a conversa no quarto era sobre dinheiro?’

Costa Neto responde: ‘Ele sabia. O presidente sabia o que a gente estava negociando. Olha, ele e o Zé Dirceu construíram o PT juntos. O Lula sabia o que o Dirceu estava fazendo. O Lula foi lá para bater o martelo. Tudo que o Zé Dirceu fez foi para construir o partido’.

Declaração que não houve

Uma leitura atenta da entrevista de Costa Neto indica claramente que o contexto da discussão sobre o dinheiro não se refere nem à sua origem nem muito menos se seria de um eventual caixa 2. O que está, sim, explícito na entrevista é a destinação do dinheiro: ajudar na estruturação do PL, que precisava alcançar 5% dos votos para ter as verbas do fundo partidário.

Apesar disso, a reportagem do Jornal Nacional reproduz a entrevista publicada na Época destacando os trechos em que Costa Neto diz que ‘o presidente sabia’. Em nenhum momento é esclarecido que, pela entrevista, seria impossível deduzir se as negociações de 2002 para um possível acordo entre PT e PL envolveriam pagamento feito por caixa 2 ou por qualquer outra forma ilícita.

A insinuação se expande quando da repercussão do pronunciamento do presidente da República, deliberadamente ‘misturada’ com a repercussão da entrevista de Costa Neto. Ouvido pelo Jornal Nacional, o deputado Gustavo Fruet (PSDB-PR), integrante da CPMI dos Correios, afirma que era preciso um depoimento mais duro, mais firme, ‘principalmente quando o presidente do PL declara em revista de circulação nacional que o presidente Lula sabia de tudo que foi tratado na campanha, do pagamento e dos valores’.

Como vimos, não foi isso o que foi declarado por Costa Neto.

Importante: embora não tenha aparecido nas matérias mencionadas, a grande novidade da entrevista de Costa Neto era que o dinheiro negociado não se destinava ao até agora hipotético ‘mensalão’, contrariando ‘a informação’ que tem sido repetida à exaustão na mídia desde a primeira denúncia do deputado Roberto Jefferson.

Fraude exemplar

Ainda no mesmo final de semana, a revista CartaCapital (nº 355) publica matéria intitulada ‘A típica fraude exemplar’, na qual mostra como grande parte da ‘confissão’ feita por Costa Neto à Época já havia sido publicada na edição 213 da revista, em outubro de 2002 [ver remissão abaixo]. A informação de que o PL receberia 10 milhões de reais para fazer a aliança política com o PT já estava lá.

E mais: segundo a CartaCapital, uma assessora de Costa Neto havia comprado na Editora Confiança, que publica a revista, dois exemplares da edição 213 antes de ex-deputado conceder sua entrevista à Época (a nota fiscal da compra é reproduzida na matéria).

Outra vez: afinal, de que o presidente sabia (ou não sabia)? CartaCapital conclui:

‘Não há, até o momento, nenhuma indicação de que Lula conhecesse e tivesse avalizado as operações clandestinas da dupla Delúbio e Marcos Valério para saldar dívidas de campanha, pagar supostos mensalões ou servir de eventual caixa para o partido ou dirigentes petistas’ (pág. 22);

‘Em momento algum – tanto em CartaCapital quanto em Época – se diz que naquela ocasião Lula sabia que a fonte de recursos para cooptar o PL seria ilegal’ (pág. 24).

Propriamente dito

O jornalismo de insinuação faz exatamente o que o nome indica: insinua. A insinuação da Época – repercutida pelo Jornal Nacional e pelo Jornal da Globo – é de que o presidente da República sabia de uma negociação política que envolvia dinheiro ilícito. Só que isso não aparece na entrevista que serviu de base à matéria. Nem como denúncia e, menos ainda, comprovado de qualquer forma.

A disputa por um novo ‘furo’ a cada dia e a corrida impaciente na busca da comprovação do suposto envolvimento direto do presidente da República nas denúncias têm levado a comportamentos injustificáveis tanto do ponto de vista da ética profissional como do bom jornalismo.

Ao insistir nessas práticas de jornalismo de insinuação, o jornalismo propriamente dito não se coloca à altura do grave momento que estamos vivendo.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)