Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

‘Ombudsman por um dia’ é um escárnio à ideia original

A Folha de S.Paulo é incorrigível: não resistiu ao instinto badalativo, autofágico, jogando no lixo o avanço mais sério em matéria de transparência adotado pela mídia brasileira desde a redemocratização.

Com seriedade e circunstância, ao longo de um quarto de século (1989-2014) o jornalão da Barão de Limeira manteve quase solitariamente a instituição que melhor representa o conceito de pluralismo e diversificação da imprensa.

Ao criar a função, entregá-la a Caio Túlio Costa e em seguida a onze outros profissionais de alto gabarito, o jornal respondeu com extrema dignidade às acusações de que fizera uma jogada de marketing. Agora, na hora da festa, prestes a colher os prêmios pela seriedade do projeto, cedeu à tentação marqueteira e entregou-se com prazer à tarefa de se desconstruir e se avacalhar. Coisas do Brasil.

Transparência e diversidade

A festiva promoção “Ombudsman por um dia” contraria frontalmente os predicados básicos da função. O Ombudsman (na Suécia do início do século 19) era o representante do cidadão. Razão pela qual este Observatório prefere o equivalente em vernáculo – Ouvidor. Alguns jornais, como o El País, designam o cargo como Defensor do Leitor, o que ressalta o seu sentido representativo, sua razão de ser.

O Ombudsman/Ouvidor é uma extensão do leitor, não está ali para escrever coisas engraçadinhas, originais ou apenas fingir que está criticando o veículo. Seu compromisso é com o leitor, seu olhar é o do leitor – por isso passa a semana inteira conectado simultaneamente com ele e com a chefia da Redação.

É possível representar o leitor através de um mandato-ersatz de 24 horas? Não.

Qual o poder efetivo deste que deveria representar um contrapoder na Redação? Nenhum.

Seu texto tem trânsito livre como ocorre com as opiniões dos ouvidores oficiais? Não tem, nem precisará: os amigos “da casa” não gostam de correr riscos.

Qual o sentido de debochar de algo imperiosamente rigoroso? Não há sentido.

O desvelo e cuidado que a Folha ofereceu à função não fizeram com que estes 25 anos tenham transcorrido sem turbulências. Houve divergências, estranhamentos, mandatos encurtados. O elogio da função também não pode ser interpretado como indício de que seja suficiente para atender à exigência de transparência e diversidade na imprensa. A multiplicação de ouvidorias respeitadas e respeitáveis criará um processo natural de autorregulação que fatalmente destravará uma imprensa engessada, monocórdia e concentrada.

Com isso não se brinca.

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