Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Manda grampear quem pode, obedece quem não tem juízo

‘Quem me grampeou?’ – pergunta o Sindicato dos Jornalistas do Espírito Santo na campanha que desencadeou esta semana para lembrar a passagem do segundo aniversário do escândalo dos grampos ilegais no estado. A pergunta, claro, tem alguma serventia, porque ajuda a manter vivo um assunto que vive sob a permanente ameaça de morrer de inanição por falta de curiosidade – por assim dizer – das principais vítimas do grampo, os dirigentes da Rede Gazeta de Comunicação. Mas a pergunta que cabe fazer neste momento é outra porque quem grampeou já se sabe que foi a desajuizada turma de arapongas do secretário estadual de Segurança, delegado federal Rodney da Rocha Miranda, demitido do cargo quando o escândalo estourou e renomeado quando o caso foi abafado. O que importa saber agora é ‘quem mandou me grampear’.

Só que não seria tão fácil assim responder a esta pergunta com alguma precisão, pois às dificuldades naturais de uma investigação dessa envergadura se juntariam alguns sérios riscos, inclusive de vida, pois seria preciso voltar bastante no tempo – abril de 2003 – e remexer no nebuloso episódio do assassinato do juiz Alexandre Martins de Castro Filho. Como fizeram, em parte, os integrantes de uma CPI da Assembléia Legislativa e, de início, os responsáveis pela investigação do crime na esfera policial.

Morte encomendada

Na CPI, encerrada no final do ano passado sem a leitura do relatório final, os deputados que a integraram concluíram o óbvio, ou seja, que Rodney Miranda não agiu por conta própria, mas por ordem de seu superior hierárquico, o governador Paulo Hartung, que manda em tudo por aqui. (Ambos, secretário e governador, figuram como passíveis de indiciamento no relatório inédito da comissão, que só Século Diário divulgou.) E no inquérito policial consta um depoimento elucidativo sobre o grampeamento de aproximadamente seis mil linhas telefônicas no período das primeiras investigações policiais do crime do juiz.

É o depoimento da personal trainer Júlia Eugênia Fontoura, orientadora do juiz assassinado na academia de ginástica que ele freqüentava, em Vila Velha, e à porta da qual foi fuzilado na manhã de 23 de abril de 2003. Júlia era também confidente do juiz. E a ela, às vésperas de sua morte, Alexandre manifestara a suspeita de que sua morte estava sendo tramada por ninguém menos que o governador Paulo Hartung. Esta revelação foi feita pela repórter Lena Azevedo, em matéria publicada no site Congresso em Foco.

A suspeita do juiz pode até não ter fundamento, mas tem alguma base. Surgiu quando, chamado ao palácio do governo, ele ouviu de Hartung uma consulta sobre se desejava proteção da polícia estadual, já que se intensificavam os rumores de que sua morte estava sendo encomendada. Alexandre dissera então à personal trainer, sem entrar em maiores detalhes, ter recusado a oferta, que lhe agredira a sensibilidade, soando-lhe como uma armadilha.

Monitoramento dos jornalistas

Os detalhes que Alexandre escondera de Júlia apareceriam mais tarde na forma de comentários de pé de ouvido, nos bastidores, e por meio da divulgação clandestina de trechos das apurações policiais, todos indicando a presença do juiz em investigações sobre o envolvimento de figuras importantes do governo, ou a elas ligado por laços de parentesco, em crimes sob apuração do setor que o juiz comandava no Tribunal de Justiça, a Vara de Execuções Penais. Esta seria a base da suspeita do juiz quanto ao risco Hartung. E ela, por si só, explica a onda de grampos, especialmente o grampo em A Gazeta.

A olhos forasteiros pode parecer estranho, ou mesmo inverossímil, que um governador reúna tanto poder como conseguiu reunir o capixaba Paulo Hartung, a ponto de ter domínio absoluto sobre as nossas instituições. Aos olhos locais, não. Quem acompanha de perto a política capixaba sabe que Hartung mantém sob controle a mídia convencional – especialmente as duas principais redes de Comunicação, Gazeta e Tribuna –, o Ministério Público Estadual, o Judiciário e a classe política (esta com as exceções de praxe).

Com todo esse poder, e vendo seu nome circular à boca pequena como envolvido no assassinato do juiz, ele não poderia mesmo deixar livres de monitoramento os jornalistas que cobriam o crime. Nem os advogados que atuavam no caso. E assim o grampo se disseminou.

Projeto de hegemonia

Quando o escândalo veio à tona, os veículos da Rede Gazeta se ocuparam à larga do assunto. Mas isso não durou muito. Durou até o momento em que o nome do governador começou a aparecer mal na história. Aí, o escândalo saiu da pauta dos veículos da rede. E a partir de então, só Século Diário manteve a cobertura sistemática do caso, a partir daquele momento restrito à Assembléia Legislativa, onde aos trancos e barrancos se arrastava morosamente a chamada CPI do Grampo.

A derrocada da CPI contém lances de filme de mistério de terceira categoria – como o sumiço de documentos dos seus anais, o cancelamento da sessão para a leitura do relatório final e promessas de rigor na apuração desses fatos. Mas o lance decisivo mesmo da operação-abafa foi um acordo do governo com o presidente da CPI, Rudinho de Souza (PSDB), e um dos mais atuantes de seus membros, Cabo Elson (PDT). A eles coube o papel de coveiros da CPI. Ambos haviam se candidatado à reeleição e saíram derrotados. Em razão do acordo, Rudinho, na primeira suplência, ficou na expectativa de uma convocação para exercer novo mandato, tão logo fosse chamado para o governo um deputado eleito da coligação pela qual concorrera. E Élson, um cabo reformado da PM, esperava um bom emprego no escalão médio do governo.

Século Diário soube da maracutaia e, mais uma vez sozinho, botou a boca no trombone. Resultado: Élson, nomeado num dia para uma assessoria no gabinete civil do governo do estado, foi desnomeado no dia seguinte. E Rudinho continuou, como continua até hoje, sem mandato.

É nesse pé que estamos. A deputada federal petista Iriny Lopes se esforça para levar a investigação do caso para a esfera federal. Mas seus dois companheiros de partido na bancada estadual de deputados – Cláudio Vereza e Givaldo Vieira – mantêm obsequioso silêncio a respeito. Com o grampo congelado, Hartung continua à vontade para levar adiante seu projeto de hegemonia política. Quer manter seu grupo no poder do estado pelos próximos 25 anos. Tem tudo para conseguir.

Haja grampo!

******

Jornalista, diretor do jornal online Século Diário, Vitória, ES