Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Manuel Pinto

‘O processo judicial da pedofilia e abuso sexual de crianças, conhecido por ‘caso Casa Pia’, acaba de entrar numa nova fase, com a decisão de um magistrado do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa de abrir a fase de instrução. No mesmo despacho, o juiz declarou que doravante o processo deixa de estar em segredo de Justiça, podendo ser consultado por quem nele tiver ‘interesse legítimo’. Como o JN dava conta há dias, o Código de Processo Penal prevê que a Imprensa possa ser considerada uma parte com interesse legítimo.

Não será difícil adivinhar igualmente uma nova fase na cobertura jornalística do caso. Passando a ter a possibilidade de analisar as dezenas de volumes que compõem os autos e podendo relatar o que se vier a passar nas audiências, cresce exponencialmente a responsabilidade dos media relativamente àquilo que vão escolher para noticiar e – não menos importante – acerca do modo como o vão fazer.

O ‘Jornal de Notícias’ esteve já no centro do ‘furacão’ deste processo, quando, nos primeiros dias deste ano, o presidente da República veio verberar a decisão do jornal de dar a conhecer a existência nos autos de cartas anónimas que refeririam o nome de Jorge Sampaio (e o de António Vitorino). A decisão do jornal de tornar público este facto teve por motivo, conforme posição pública da Direcção, o juízo que fez de que poderia estar a verificar-se um facto grave relativamente ao modo como o processo estava a ser conduzido, razão pela qual seria de interesse público que esse facto fosse divulgado. Do ponto de vista deste diário, tratava-se de agir em defesa do bom nome do presidente da República – um ponto de vista que foi compreendido, mas também contestado, por diversos sectores.

Esse episódio ocorreu antes de o provedor actual entrar em funções, pelo que não fazia sentido apreciá-lo. O importante seria reforçar ainda mais os critérios de exigência e de rigor que os responsáveis editoriais do jornal publicamente assumiram. Em todo o caso, o que se passou leva naturalmente muitos leitores e, por maioria de razão, o próprio provedor, a acompanhar com atenção o modo como o JN continua a acompanhar o assunto.

E porque entendo que o papel de um provedor não pode ser meramente reactivo aos acontecimentos, mas que pode ter alguma intervenção de antecipação, considerei oportuno saber junto da Direcção do jornal que directrizes ou orientações iria o JN seguir, nas etapas do processo que se avizinham.

Como seria de esperar, o JN já requereu a consulta dos autos, o que lhe permitirá avaliar as matérias em presença, situar-se perante aquilo que é relevante e o que é secundário e, inclusivamente, reflectir sobre a cobertura feita até ao momento. Sem esquecerem que é ao tribunal que compete julgar, os jornalistas beneficiam significativamente no seu trabalho da percepção do que está em jogo e do quadro mais amplo em que cada facto se inscreve. Mas aquilo que traz vantagens comporta igualmente riscos de monta.

Já na semana finda, o director do JN, em nota de comentário à decisão do juiz de abrir o processo à consulta, considerou-a ‘muito corajosa’, porquanto ‘revela, desde logo, confiança nos media e a consciência de que a publicidade não afectará o julgamento’. E manifestando o desejo de que ‘o conjunto da Comunicação Social entenda esta atitude dentro dos limites da ética e da deontologia’, aproveitou para enunciar esses limites: ‘não haverá revelação da identidade das vítimas nem intromissões na esfera estritamente privada dos arguidos, e os pormenores sórdidos que rodeiam todo este processo não são necessários para a correcta informação do público’. Estas mesmas ideias foram expressamente reiteradas numa mensagem que endereçou ao provedor. Poderemos, pois, nós, os leitores, ficar tranquilos?

Quando o director refere ‘o conjunto da Comunicação Social’ está a tocar numa questão-chave: os diferentes media não têm todos o mesmo entendimento do que seja o interesse público. Para alguns, este interesse público parece consistir em saciar o apetite de alguns sectores pelo que há de mais ignóbil e nauseabundo. Por outro lado, o sistema mediático parece obedecer, por vezes, a uma lógica imitativa não assumida, que leva a uma espécie de onda de derrapagem, quando um dos media começa a ‘descambar’.

Contudo, aquilo que cada um pode fazer é tomar conta da sua própria casa. E no que, em especial, ao JN diz respeito, há outros aspectos em que o provedor gostaria de insistir, para além dos pontos já enunciados. Referem-se, no essencial, ao cuidado a ter na relação com as fontes informativas e no tratamento jornalístico das informações veiculadas por essas mesmas fontes. Nunca será bastante a atenção que se prestar àquela regra básica do jornalismo segundo a qual ‘não há fontes de água pura, porque todas as fontes estão de algum modo inquinadas por algum interesse ou perspectiva’. Dar aos leitores o máximo de informação que for possível sobre as fontes em que as notícias se baseiam, incluindo as circunstâncias e interesses que possam ser relevantes para a avaliação da pertinência dos factos ou dos comentários, sem esquecer aquele ponto do Código Deontológico que diz que ‘as opiniões devem ser sempre atribuídas’.

Uma das dificuldades acrescidas que um caso como este levanta é que cria uma quase obrigatoriedade de ter todos os dias alguma informação para publicar. A matéria é complexa, mexe com valores que sustentam a sociedade, implica pessoas de grande visibilidade e poder de influência, pelo que é fácil cair na lógica do folhetim que, para ser alimentado, necessita de episódios regulares, mesmo que, como acontece frequentemente nas novelas, pouco adiantem para a compreensão da história. Ora ‘dar informação’ não pode ser um objectivo em si mesmo, mas antes um meio para compreendermos melhor o mundo que habitamos e dar sentido – se possível for – à nossa existência nesse mesmo mundo.

Faleceu, na semana que passou, o autor de numerosos ‘best-sellers’, contemplado com pelo menos um prémio Pulitzer: Daniel Boorstin. Provavelmente será mais conhecido entre nós por ser o autor de livros como ‘Os criadores’ e ‘Os descobridores’ (Ed. Gradiva) ou ‘Os pensadores’ (Ed. Círculo de Leitores). Mas ele foi também o criador do conceito de ‘pseudo-evento’: eventos que aparecem nos media e que foram construídos especificamente para aí aparecerem. Ou seja: eventos que se tornam acontecimento não pela sua importância intrínseca, mas porque são mediatizados. Vale a pena analisar os media a esta luz: as conclusões podem ser surpreendentes. Já agora, uma frase atribuída a Boorstin, de alcance vasto, mas que faz sentido neste contexto: ‘O maior obstáculo à descoberta não é a ignorância, mas a ilusão do conhecimento’.

O jornalista Jayson Blair foi corrido, no ano passado, do prestigiado ‘The New York Times’ porque falsificava notícias e plagiava trabalhos. Foi um rombo estrondoso na credibilidade da ‘bíblia’ do jornalismo internacional, a obrigar a medidas drásticas, uma delas a criação do cargo de provedor do leitor. Ora, como se não bastasse o que tinha feito, o jornalista, recomposto do embate, volta à carga com um livro em que conta as suas façanhas e ainda se faz de vítima. Foi ontem lançado com grande aparato nos Estados Unidos, e vai ser certamente um ‘best-seller’. Cá está um pseudo-acontecimento. Já dizia uma ‘filósofa’ portuguesa: ‘quem tem ética passa fome’.’