Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Marcelo Beraba

‘‘Cada probleminha que acontece aqui tem uma repercussão enorme. As pessoas não têm culpa. Mas não sou eu que faço o jornalismo’ (Ronaldo)

Não são muitos os leitores insatisfeitos com a cobertura da Copa de futebol da Alemanha feita pela Folha. Pelo menos é o que indica o pequeno número de mensagens recebidas pelo ombudsman. As principais críticas não são dirigidas especificamente à Folha, mas à imprensa em geral: excesso de espaço (nos jornais) ou de tempo (nas TVs), ufanismo e alienação.

Há os leitores que confessam que detestam o futebol e reclamam da quantidade de notícias sobre a Copa que enchem as primeiras páginas e as páginas internas do jornal. E há os que gostam do esporte, acompanham a Copa, mas também vêem exageros.

Tamanho

Uma das características da cobertura de Copa do Mundo dos grandes jornais brasileiros é exatamente o exagero. Aliás, essa fórmula não se aplica apenas às Copas. Qualquer grande assunto em que se imagine um interesse maior do leitor empurra os diários para uma competição por quantidade (de páginas), e não necessariamente por qualidade (de informação).

A cobertura exagerada não é uma característica apenas da imprensa brasileira. Em todos os países onde existe tradição futebolística, a imprensa está, neste momento, totalmente voltada para a Alemanha. Isso ocorre mesmo com jornais de prestígio, como é o caso do ‘El País’, da Espanha, uma referência de jornalismo de qualidade.

Na terça-feira, os jornais brasileiros apresentaram o jogo de estréia do Brasil contra a Croácia. A Folha editou um caderno com 12 páginas; ‘O Estado de S. Paulo’ (16 páginas) e ‘O Globo’ (20) a superaram. O ‘El País’, um tablóide, editou na quarta-feira, quando apresentou o jogo de estréia da Espanha contra a Ucrânia, um caderno de 22 páginas, que deve equivaler ao tamanho do da Folha.

A grande diferença entre os três jornais brasileiros e o espanhol está na visibilidade. A primeira página do jornal ‘El País’ de quarta-feira trazia uma chamada discretíssima, no pé da página, para a estréia da seleção espanhola, e um amplo cardápio de assuntos. Na Folha, na terça-feira, a mancha sob o selo ‘Copa 2006’, com a apresentação do jogo do Brasil, ocupava 66% da capa. Outro exemplo de overdose ocorreu ontem. Praticamente todo o alto da capa da Folha foi tomado pelas fotos dos seis jogadores argentino que marcaram a goleada contra Sérvia e Montenegro.

Omissão

O grande destaque diário da Copa na Primeira Página empurra as outras notícias para um segundo plano e gera queixas dos que acham que os jornais aproveitam para relaxar no acompanhamento dos grandes problemas do país, como corrupção e criminalidade, e de assuntos importantes, como as eleições presidenciais.

É verdade que esses assuntos perdem espaço, mas é verdade também, no caso da política, que as notícias somem e os jornais criam dramas a partir de episódios menores. As manchetes da Folha de anteontem e ontem foram as ofensas trocadas entre o governo e a oposição. O jornal ignorou, por exemplo, o relatório da ONU sobre o crescimento das favelas no mundo.

Os leitores que mais reclamam de omissão de notícias nestes dias são, curiosamente, leitores do caderno Esporte que não se conformam com a hegemonia do futebol e o noticiário minguado sobre competições importantes no tênis (Rolland Garros), no iatismo (regata Volvo Ocean Race) e no basquete (as finais da NBA). As colunas de esportes que não são sobre futebol só poderão ser lidas, durante a Copa, na Folha Online.

Ufanismo

Esta é outra característica histórica do jornalismo esportivo brasileiro. A Folha geralmente tem um ponto de vista mais crítico em relação à seleção, às vezes confundido com má vontade. Nesta Copa, não percebi nenhum dos extremos, exceto na capa do caderno de terça-feira, quando a seleção estreou: ‘Super, master, hiper, ultra, maxi, power, megafavorito’. A edição era contrabalançada, no entanto, por um ‘mas…’, que remetia, na contracapa, para os problemas do time, as histórias de frustrações em outras Copas e as dificuldades que terá pela frente na Alemanha.

‘O Globo’ exagerou na apresentação do jogo: ‘A hora da estrela – Ronaldinho Gaúcho entra em cena para fazer história’. Mas nada que chegue perto do que se ouve na televisão.

Esta Copa tem uma presença mais forte das emissoras de TV e da internet, que fazem uma cobertura ao vivo e em tempo real de praticamente tudo que acontece na Alemanha. Pouco sobra para os jornais no dia seguinte. Eles deveriam se distinguir pelas notícias, reportagens e análises exclusivas, mas isso é o que menos se encontra.

As páginas são ocupadas basicamente pelo noticiário já conhecido da véspera e por comentários já disponíveis em outros meios. Este talvez seja o maior problema.’



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‘A ênfase na distorção’, copyright Folha de S. Paulo, 18/6/06.

‘O antropólogo Gilberto Velho é titular e decano do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Adora futebol.

Ombudsman – As principais críticas que tenho visto em relação ao trabalho da imprensa na cobertura da Copa da Alemanha dizem respeito ao excesso de espaço e tempo, ao ufanismo e ao fato de que outros assuntos relevantes acabam ofuscados. Qual é a sua avaliação?

Gilberto Velho – Concordo, mas só que tem uma outra dimensão: é inevitável, no decorrer de episódios da vida social, que as pessoas derivem para outros assuntos. As pessoas não podem ficar o tempo todo vivendo a dimensão mais sofrida, mais trágica da vida social, de uma sociedade com denúncias de corrupção e com a vivência aguda de violência. Tudo isso é verdade, mas é preciso entender que a vida social, pela sua complexidade, faz com que as pessoas se movam em vários planos. Tem o lado lúdico, o lado amoroso, o lado festivo.

Agora, eu acho que a imprensa dá uma cobertura excessiva, deixando de lado ou obscurecendo outros assuntos. Não estou dizendo que é uma conspiração, mas é um excesso de focalização na Copa.

Além disso, há uma ênfase a um certo tipo de tema que implica uma certa distorção, como é o caso do Ronaldo, transformado no centro das atenções e até em bode expiatório. Acho que tem uma dimensão de crueldade que me espanta. O grande assunto passa a ser um drama pessoal, a dificuldade de um indivíduo, e não a dimensão do esporte, da seleção como um todo, as atuações dos outros jogadores. Eu acho que virou um exercício de uma certa crueldade pública.

O time brasileiro, do meio para frente, jogou mal. Ronaldinho Gaúcho jogou muito aquém do que costuma jogar. Kaká fez uma bela jogada, correu mais, fez um bonito gol. O Adriano não jogou nada. O time não jogou bem como um todo. No entanto, tudo fica em cima do lado dramático, de um lado pessoal, quase criando uma novela Ronaldo, ao invés de discutir mais a competência geral da seleção, seu modo de jogar, a articulação entre os setores.

Então, acho que não é só porque fala demais sobre a Copa. Fala demais e focaliza de tal forma uma temática que não dá uma visão mais geral.

Outra coisa que também acho muito estranha, e que talvez apareça mais na televisão do que na imprensa escrita, é a mania de estatísticas e números. Uma verdadeira obsessão que às vezes disfarça um desconhecimento da história do futebol.’