Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Mídia, celebridades, solidariedade

Enquanto a consciência de que somos cidadãos do mundo não vem, resta aplaudir o bom exemplo que vem de fora. Refiro-me ao terremoto que feriu de morte o Haiti na terça-feira, 12 de janeiro. Eram 16h30 em Porto Príncipe, capital haitiana, e o programa A Voz do Brasil estava na metade quando o futuro foi arrancado debaixo dos pés de cerca de 100 mil pessoas. Chegando aos 7 graus na escala Richter, o epicentro dos tremores que teria sido a apenas 10 quilômetros de profundidade foi localizado a cerca de 22 quilômetros da capital.


O palácio presidencial, vários hospitais, dezenas de prédios e até a catedral de Porto Príncipe vieram abaixo. O céu encobriu por completo as nuvens e tudo, em segundos, eram apenas cinzas e fumaça. Caos e devastação aliaram-se à miséria e à violência com que se debatia o país mais pobre do Ocidente. As cenas da destruição podiam eclipsar os efeitos visuais aplicados ao último exemplar do cinema catástrofe, 2012. Nas telas observávamos a engenhosidade dos que sabem das manhas e artimanhas das novas tecnologias, mas na vida os plantões jornalísticos, telejornais e revistas eletrônicas de variedade trouxeram para dentro de nossas retinas dores e angústias extremadas, imagens que capturavam o próprio fio da vida se esvaindo por entre escombros, vidas soterradas por toneladas de cimento e aço.


Por algumas vezes não consegui conter as lágrimas enquanto espremia os olhos para ver o buraco focalizado pela teleobjetiva e a insistente pergunta da repórter: ‘Tem alguém aqui? Estamos ouvindo uma voz saindo daqui!’ E havia, sim, uma voz. Era, naquele caso, de uma enfermeira de nome Jean-Baptiste, de 46 anos, três dias entrevada naquele buraco que antes fora berçário dos recém-nascidos do hospital. Não foi muito divulgado mas dois outros tremores secundários – de 5,9 e 5,5 graus, respectivamente – foram sentidos no país logo após o primeiro terremoto.


Escaramuças diplomáticas


No Brasil, o foco voltou-se imediatamente para a dor verde-amarela. Dezesseis militares brasileiros tiveram suas vidas interrompidas no desempenho da nobre missão a eles conferida pelas Nações Unidas em 2004: manter a ordem e a segurança no Haiti. E dois civis ilustres: a médica sanitarista Zilda Arns e o diplomata Luiz Carlos da Costa, o número 2 da missão da ONU no Haiti.


Zilda Arns tinha encerrado uma palestra em uma igreja em Porto Príncipe quando o tremor começou e morreu ao ser atingida na cabeça por uma laje. Luiz Carlos da Costa, que tinha 60 anos, dedicou sua vida à causa da paz, ingressando no sistema Nações Unidas contando apenas 21 anos de idade, e morreu na sede da Missão de Estabilização da ONU no Haiti (Minustah), em Porto Príncipe, conhecida como Hotel Christopher, que ficou completamente destruído pelo tremor.


Essas duas figuras simbolizam muito do Brasil que queremos ter. Zilda Arns, ao fundar a Pastoral da Criança, entidade da igreja católica, em princípios dos anos de 1980, criou e difundiu métodos simples que conseguiram estancar enormemente a mortalidade infantil e suas ações pioneiras correram mundo. A verdade é que o soro caseiro é o outro nome da nossa Zilda Arns. O diplomata Luiz Carlos guarda imensas semelhanças com seu colega de ofício e de trágico destino Sérgio Vieira de Mello, morto em atentado no Iraque em 19 de agosto de 2003. Foram estes os dois brasileiros que atingiram os postos mais elevados na administração das Nações Unidas.


Tendo o tremor afetado bastante a estrutura de telecomunicações, por causa disso as informações sobre vítimas e danos chegaram a conta-gotas e, no mais das vezes, desencontradas. Na falta de notícias de primeira linha em se tratando de catástrofes naturais (número de vítimas, nomes das vítimas, resgate de sobreviventes, ações emergenciais de governo), o jornalismo ensaiou algumas escaramuças diplomáticas dando conta que autoridades estadunidenses, controlando o espaço aéreo de Porto Príncipe, não autorizavam – ou dificultavam – o pouso de aviões brasileiros com ajuda humanitária. Ban Kim Mon, o secretário-geral da ONU, afirmou que esta era ‘a maior tragédia na história da Organização’.


‘Catástrofe humana’


Algo que chamou minha atenção foi a pronta resposta das celebridades à urgência do momento. Infelizmente não tenho conhecimento pela imprensa de ações louváveis de celebridades brasileiras. Vejamos alguns exemplos luminosos desses que frequentam as páginas de jornais e revistas, que aparecem constantemente em programas de entrevistas e de variedades tanto em emissoras de televisão quanto de rádio; como eles assumem uma dimensão de solidariedade compatível com sua ‘estatura midiática’.


Oprah Winfrey está apoiando vigorosamente a campanha da Cruz Vermelha Internacional em favor do Haiti, incentivando milhões de seus espectadores a fazerem doações à entidade. A primeira-dama dos Estados Unidos Michelle Obama anunciou que 48 horas após o terremoto em Porto Príncipe havia já levantado 5,9 milhões de dólares em apoio também à Cruz Vermelha. Angelina Jolie e Brad Pitt anunciaram que sua fundação estava doando de imediato 1 milhão de dólares para a organização internacional Médicos Sem Fronteiras aplicar em ações de socorro à população haitiana.


Nicole Kidman e Maggie Gyllenhaal, durante a 67ª edição do Globo de Ouro, não titubearam em aproveitar a noite de gala para pedir donativos para o povo do Haiti, usando inclusive um laço azul, vermelho e amarelo como símbolo de apoio ao devastado país. O cantor espanhol Alejandro Sanz, a partir de seu blog pessoal, vem estimulando os fãs a apoiarem economicamente o Haiti e dedicou aos haitianos seu sucesso ‘Tu no tienes alma’. Outros artistas foram a campo arrecadar contribuições por meio de telefones celulares – é o caso do músico de hip-hop haitiano Wyclef Jean e o ator Ben Stiller, que vem reunindo donativos para a organização não-governamental Save the Children.


Os desportistas também não ficaram de braços cruzados: o lendário ciclista Lance Armstrong, por meio de sua fundação LiveStrong, se comprometeu a entregar 250 mil dólares a Médicos Sem Fronteiras. Uma constelação de estrelas de Hollywood apresentará no próximo 22 de janeiro uma espécie de telemaratona nacional através do canal MTV que se chamará ‘Esperança para o Haiti’. Detalhe: o programa será exibido em horário nobre (20h) e terá como anfitrião George Clooney, a partir de Los Angeles, enquanto o rapper Wyclef Jean comandará em Nova York e o apresentador da CNN, Anderson Cooper, continuará a apresentação diretamente de Porto Príncipe.


O twitter disse a que veio: além de inflar o ego de celebridades que disputam popularidade pelo termômetro do número de seguidores mostrou ser uma rede social bem desenhada para o exercício da solidariedade e da bondade humanas. O casal de atores Demi Moore e Ashton Kutcher pediu às pessoas que façam doações ao Unicef, assim como Nicole Ritchie, a filha do cantor Lionel Ritchie. Apelos a doações também foram lançados pelo rei do hip-hop Sean Combs, mais conhecido como P. Diddy, pela atriz Jessica Alba, pelo rapper e ator LL Cool J e pelo grupo Artists for Peace and Justice, que tem entre seus integrantes o diretor de cinema Oliver Stone e os atores Josh Brolin, James Franco e Charlize Theron. ‘Não posso insistir o suficiente sobre a catástrofe humana que representa este terremoto’, declarou o ex-vocalista da banda de rap Fugees, conclamando as pessoas a ‘agir agora’.


Para onde olhar


Este é o momento adequado para se provar que não é apenas doença que contagia; saúde também contagia. É possível que algumas das nossas celebridades já tenham aberto a bolsa e o bolso (e também o coração, antes de tudo) para apoiar o Haiti. Mais do que palavras de consolo, o que eles necessitam é de alimentos, remédios, abrigo, roupas e tudo o que possa tornar mais suportável a vida de milhares (falam em milhões) de sobreviventes que perderam pais, avós, irmãos e irmãs, filhos e filhas, netos e netas nessa trágica abertura da segunda década do século 21.


Alguns podem até dizer que a humildade os impede de informar a natureza de seu apoio às vítimas do Haiti. Mas não se pode esquecer o efeito que um bom exemplo tem sobre a população. E é isso o que importa. Com tantas listas feitas por revistas semanais informando das ‘100 mais’ isso, as ‘100 mais’ aquilo, não seria o momento de sabermos o que essas ‘100 mais’ estão fazendo ou planejam fazer por esses condenados da Terra?


Quando a TV Globo e a TV Record farão uma pausa em suas escaramuças e, juntas, cada um para seu público fiel e infiel, farão uma maratona da solidariedade, investindo pesado em atrações, trazendo seus talentosos e bem pagos artistas para pedir donativos para o sofrido povo haitiano?


E as empresas que gastam fortunas dia a dia, hora a hora, semana a semana, não poderiam suspender seus gastos com publicidade por uma semana e – todas juntas – enviar toda a dinheirama ao Unicef, Unesco, Acnur, Cruz Vermelha, Médicos Sem Fronteiras para aplicação imediata na construção de hospitais, orfanatos e asilos em toda a extensão de Porto Príncipe?


Quantos apresentadores poderiam enviar seus vistosos rolex para o Unicef? Esperaremos que Madonna retorne ao Brasil e saia daqui com um cheque de 10 milhões de dólares para apoiar sua organização Success For Kids numa nova causa humanitária?


E qual poderia ser um bom trabalho da imprensa? Divulgar com garra e determinação toda essa movimentação e dar uma pausa, por breve que seja, aos temas ditos polêmicos do PNDH-3: interesses contrariados do agronegócio, menção ao aborto como caso de saúde pública, compromisso dos meios de comunicação com a defesa e promoção dos direitos humanos.


Queremos falar de direitos humanos? É para o Haiti que devemos olhar. Afinal temos, queiramos ou não, um destino comum a partilhar.

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Jornalista e escritor, mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter