Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Ministro bate na mídia pelas razões erradas

Na sua coluna de domingo (2/4), no Globo, Merval Pereira revela que o novo ministro de Relações Institucionais e ex-presidente temporário do PT, Tarso Genro, fez circular entre os companheiros uma ‘breve análise sobre a conjuntura política’ [ver a reprodução do texto no pé desta nota].


Nela, Genro vincula a queda do ministro Antonio Palocci a ‘uma santa aliança’ que estaria sendo articulada em toda a grande mídia, ‘com exceções mínimas’, para impedir a reeleição de Lula e descredenciar a esquerda como alternativa de governo.


‘Está em curso’, escreveu Genro, ‘um claro processo de recuperação – aproveitando nossos erros – do projeto tucano-pefelista…’.


Este leitor não diria nada de novo se escrevesse que está em curso um claro processo de recuperação – aproveitando os erros da mídia – da imagem petista.


Nos dois casos, erros podem ser erros – ou algo mais grave.


Jornais e revistas erram quando são mais lenientes com as mazelas da oposição do que com as do governo – embora os governos, por terem o mando do jogo político e o acesso ao cofre do dinheiro do contribuinte devam, sim, ser objeto de vigilância especialmente severa por parte da mídia.


É claro que isso não justifica nenhuma política sistemática de dois pesos e duas medidas, como a que Genro acusa a mídia brasileira de seguir, respaldando a sua acusação com uma série de exemplos.


E é fato que em um certo número de casos, setores da imprensa ‘erraram’ contra o governo Lula por má-fé e com presumíveis segundas intenções.


Ordem de cima


Nas notas do signatário publicadas neste Observatório em 6 de dezembro passado (‘Na crise, pode sobrar para a credibilidade de mídia‘) pode-se ler:




‘Decerto órgãos de mídia maltrataram deliberadamente a verdade para desmoralizar o PT e o governo. […] Mas é implausível que a grande imprensa mereça, indistintamente e a cada lance da crise o xingatório de que é alvo.’


Dito isso, também a boa-fé do ministro pode ser posta em questão. Ele, que, sob o impacto das recém-aparecidas denúncias do mensalão, defendeu nada menos que a ‘refundação’ do PT, toma liberdades com a verdade quando afirma agora que a mídia se aproveita dos ‘nossos erros’.


Primeiro, o que Dirceu, Delúbio e companhia fizeram foi mais do que ‘errar’ – se não por que refundar o partido deles? Parafraseando frase famosa do então ministro Antonio Palocci, eles sabiam o que faziam e sabiam o que significava o que faziam. Imaginar o contrário equivale a imaginar que nunca nenhum órgão de mídia brasileiro pensou em desmoralizar o PT e o governo.


Segundo, no caso específico de Palocci, onde a suposta campanha da mídia?


O homem vai à CPI dos Bingos e diz que nunca pôs os pés na casa que, por mais de uma razão, não lhe conviria que se soubesse que freqüentava.


Aparece um motorista e diz à mesma CPI que viu o ministro ali. O motorista cita um caseiro como testemunha. O caseiro resolve falar. Um senador tucano o põe em contato com uma repórter do Estado de S.Paulo. Na entrevista, ele diz o que quer: ninguém põe palavras na sua boca.


O jornal chega adiar por 24 horas a publicação da entrevista. A versão editada omite – com razão – declarações do caseiro que dizem respeito apenas à vida pessoal do ministro. [Em todo caso, uma delas escapa].


Publicada a entrevista, ele fala à imprensa em geral, quando repete as passagens que o Estado preferiu expurgar. Depois, é chamado pela CPI dos Bingos a contar de novo a sua história. Enquanto uma decisão judicial não lhe cassa a palavra, ele confirma os depoimentos anteriores.


Em represália, ou para fazer crer que foi pago para dizer o que disse, Palocci – agora se sabe – manda o presidente da Caixa Econômica devassar a conta poupança do caseiro.


O que fez e o que não fez


Pior. No dia seguinte, os extratos obtidos ilicitamente são entregues – aparentemente, pelo assessor de comunicação do ministro, Marcelo Netto – à revista Época.


Se a revista estivesse conspirando contra o governo não os publicaria. [Talvez não os devesse publicar sem caracterizar a sua origem, mas essa é outra história.]


A imprensa vai atrás da origem dos depósitos suspeitos na conta do caseiro. O governo não consegue manter a versão de que o dinheiro veio da oposição. Enquanto isso, a vida pessoal do cidadão é exposta em público.


A única aliança até agora identificada no episódio não tem nada de ‘santa’, como escreveu Tarso Genro, muito menos envolve a mídia.


É profana e envolve o ministro da Fazenda, o presidente da Caixa, assessores deste e, presumivelmente, daquele. Mais o braço direito do ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, o secretário de Direito Econômico Daniel Goldberg – que topou sondar a Polícia Federal sobre a abertura de inquérito contra o caseiro. Mais o Coaf, acionando a PF, que até então não queria nada com a história.


E mais o que ainda vier à tona.


Se é para bater na imprensa, bata-se nela pelos motivos certos. Fazê-la pagar pelo que fez e pelo que não fez é querer encobrir ‘erros’ como os que levaram o mais paparicado ministro do governo Lula a se autodestruir.


[Texto fechado às 18h de 4/4]


***


Tarso Genro x mídia


Merval Pereira / copyright O Globo, 2/4/2006


O recém-nomeado ministro das Relações Institucionais, Tarso Genro, enviou a um grupo de militantes e simpatizantes petistas uma ‘breve análise sobre a conjuntura política’ escrita no calor da hora, na noite do dia em que o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, foi substituído, na definição de Genro, ‘após um dramático percurso de desgaste’. O texto, embora semelhante aos que torna públicos em jornais e revistas, é mais solto e dá uma noção clara de como pensa o novo coordenador político do governo, especialmente em relação à imprensa.


Adepto da teoria da conspiração, ele identifica no que chama de ‘subtexto’ da saída de Palocci ‘uma santa aliança sendo articulada em toda a grande mídia, com exceções mínimas’ para atacar os ‘avanços democráticos’ do governo Lula e fazer voltar políticas do governo anterior.


Ele começa citando uma série de fatos que, segundo afirma, foram tratados de maneira ‘natural’ pela mídia, com alguns comentaristas ainda elogiando ‘atos de marginalidade política’, como a agressão a bengaladas ao ex-deputado José Dirceu ou a ameaça do senador Arthur Virgilio, líder do PSDB, de dar um soco no presidente. Genro cita a divulgação de dados obtidos com a quebra do sigilo do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, e supostas violações de dados sigilosos das CPIs, o que considera mais grave do que violar sigilo bancário, e diz que ‘nenhuma indignação ou reflexo importante foram vistos na mídia ‘democrática’ do país’.


Segundo Genro, esse tratamento de ‘dois pesos e duas medidas’ significa que está em curso ‘uma tentativa de eliminação política da esquerda com credenciais democráticas para governar’. Mais ainda: ‘Está em curso um claro processo de recuperação –- aproveitando nossos erros – do projeto tucano-pefelista e dos seus conhecidos padrões de honestidade pública, já revelados nos processos de privatização’. Genro insiste em que ‘o governo Lula está sendo atacado pelas suas virtudes, pelas políticas progressistas que desenvolve em diversas áreas, pela ‘plebeização’ do processo democrático no país’.


O objetivo dessa conspiração seria voltar ‘aos tempos das privatizações selvagens para ‘enxugar’ o Estado; voltar aos tempos em que os movimentos sociais estavam em permanente ameaça de criminalização; voltar ao período de alinhamento automático com os EEUU; retomar a liquidação do ensino público superior como ocorria na época do ministro Paulo Renato; privatizar totalmente o setor elétrico; acabar com a ‘gastança’ do Bolsa Família’, além de querer ‘um governo que ajude os EEUU a promover a Alca e isolar as experiências progressistas na América Latina’.


Recentemente, travei com Tarso Genro uma troca de mensagens sobre o papel da mídia nas democracias modernas que reflete bem seu pensamento. Transcrevo aqui nosso diálogo com a permissão dele. Em colunas anteriores, eu havia criticado Tarso Genro por idéias expostas em seu livro ‘A esquerda em progresso’, especialmente pela defesa de conselhos estatais para controlar os meios de comunicação.


Ele me respondeu dizendo que achava ‘muito estranho que um presumido Conselho, que tenha representantes do três Poderes, de todos os partidos políticos e representantes eleitos nos Estados da Federação, sem poder de legislar, seja considerado um controle’.


Segundo ele, esses conselhos garantiriam ‘a liberdade de informação e o livre trânsito de opiniões na sociedade democrática’, pois ‘a democracia é incompatível com o controle da opinião pública por uma mídia unilateral. Seja a partir do Estado, seja a partir de grupos ideológicos sem a mínima isenção’.


Respondi-lhe que compartilhávamos a idéia da defesa da pluralidade de opinião, mas não compreendia que um democrata quisesse controlar a opinião pública através de conselhos estatais, interferindo na livre escolha do cidadão. A sociedade tem à sua disposição diversos jornais, revistas, televisões, rádios, das mais variadas tendências, e de variados grupos empresariais, e deve fazer sua opção livremente, não sob a orientação de órgãos governamentais. Caberia ao estado garantir que, através da educação, a sociedade tenha condições de escolher, escrevi em resposta.


Tarso Genro replicou lembrando que o conceito de liberdade de imprensa ‘é uma questão verdadeiramente complexa, que é enfrentada por todas as democracias maduras. Lembro-te, por exemplo, a cobertura da Guerra do Golfo nos EEUU – ‘todos os cidadãos americanos encantados com os bombardeios limpos’ – e a unanimidade da imprensa americana sobre a necessidade da invasão no Iraque’.


Seria contra este controle e esta ‘naturalização’ da opinião unilateral, de quem domina o poder político no momento, que se colocaria a pluralidade e o ‘livre trânsito de opiniões’, como uma nova exigência democrática, disse Tarso Genro em resposta. ‘É um antídoto a um certo tipo de mídia que pode ensejar uma forma pós-moderna de totalitarismo, cujo núcleo duro do controle é o poder econômico’. Trata-se, na verdade, de um ‘ombudsman’ coletivo da sociedade civil, exemplificou ele. Retruquei concordando plenamente com os exemplos que ele dera, mas afirmei que não acreditava que um conselho governamental fosse a solução. Os prejuízos que a sociedade americana sofreu com a parcialidade da imprensa nos primeiros meses da guerra estão sendo revertidos hoje com a autocrítica dos meios de comunicação e uma ampla revisão de procedimentos, respondi.


O antídoto, portanto, foi a própria liberdade de opinião, que acabou revelando os desvios do governo americano e colocando em debate, através da sociedade civil, o papel submisso da imprensa. Pelos comentários que enviou aos militantes do PT, vejo que o ministro Tarso Genro continua acreditando em conspirações e controles.