Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Moralismo imoral da grande mídia

Os jornais, como sempre, prisioneiros do moralismo congênito, que o pensamento mecanicista subjetivamente constrói, criticaram, em seus editoriais, as declarações do presidente Lula favoráveis, primeiro, ao aumento da contratação, via concursos, de servidores públicos e, segundo, da ampliação necessária da carga tributária, que o aquecimento econômico, naturalmente, provoca.

O capitalismo, essencialmente imoral na sua escala sobre-acumulativa, não comporta moralismo pequeno-burguês. As empresas, sim, têm que aumentar continuamente a produtividade, no compasso do desenvolvimento científico e tecnológico, pois, caso contrário, não suportarão a concorrência no contexto da globalização econômica. A tendência é o aumento da oferta, proporcionado por tal avanço da ciência e da tecnologia. Contraditoriamente, tal movimento, que impõe a máquina como braços mecânicos que substituem os braços humanos, eleva continuamente a taxa de desemprego. Há algo mais imoral do que isso, a exigir compensação moral?

Onde será possível arrumar novos empregos, se o setor privado, mecanizado, científica e tecnologicamente, em escala ascensional, não criar vagas suficientes na escala demandada pela sociedade? Haverá, pela lógica, a mais alta produtividade, de um lado, e o mais alto nível de desemprego, de outro. Esse tema é velho. Vem desde o século 19. Ricardo e Malthus trocaram cartas durante 50 anos sobre o tema. Essencialmente, ambos focavam a questão do desemprego, justamente no compasso do avanço da mecanização da produção.

Produção e desemprego

Se a produção mecanizada capitalista, que tem no lucro a sua motivação maior, poupa mão-de-obra para enfrentar a concorrência, tem-se crescente produção que passa a ter dificuldade de realizar-se no consumo, pois o movimento produtivo mecanizado diminui a oferta de trabalho, isto é, de consumo. Demanda por trabalho diante de alta oferta de mercadoria levará à sobra, de um lado, de mão-de-obra, e de outro, das próprias mercadorias.

O que fazer? Malthus foi claro e por falar a verdade foi demonizado. A extraordinária capacidade da produção, acelerada pela ciência e pela tecnologia, impulsionadoras da produtividade, expressa em eficiência crescente, ao colocar em xeque o consumo, exige o seu contra-pólo, a ineficiência do Estado, que precisa entrar no processo produtivo para evitar que a oferta de mercadorias diante da escassez da oferta de trabalho produza deflação. A ineficiência da máquina estatal, destinada, apenas, a consumir, torna-se, portanto, imperativo categórico. Pregar a eficiência estatal, como faz a mídia, é pregar o fim da eficiência do setor privado. Ambos são pólos positivos e negativos que interagem e se negam, gerando ultrapassagens dialéticas, e não meramente mecânicas.

As massas desempregadas, que se ampliam extraordinariamente nos grandes centros urbanos, demonstram que a exclusão social marcha inexoravelmente no passo dinâmico da revolução tecnológica. Teremos uma montanha de mercadorias produzidas com a máxima eficiência, de um lado, e uma montanha de desempregados, gerados por tal eficiência, de outro, mantidos, teoricamente, os pressupostos do livre mercado. Uma coisa anula a outra.

Sobrevivência do trabalho

Quando o ser humano excluído não presta para mais nada, sobra-lhe, ainda, uma função social primordial: consumir. Ao exercitar o consumo, gira a máquina produtiva, livra a produção da deflação destruidora, a qual exige, em seu contra-pólo, a inflação salvadora. O que faz a inflação, naturalmente, como destaca Malthus, copiado posteriormente por Keynes, são os gastos governamentais. A dívida pública nasce, portanto, para ser o contra-pólo da inflação, de modo que tentar moralizar a dívida pública é querer destruir o capital, do ponto de vista capitalista.

O Estado, portanto, tem que ser necessariamente gastador, desperdiçador e, fundamentalmente, dissipador. Caso contrário, o sistema capitalista explode. Essa lógica deixa os moralistas em xeque. Eles querem moralizar o capitalismo, pregando eficiência para o Estado, quando este, se for eficiente, não contribui para a salvação do próprio sistema, eivado de contradições.

Não se trata, portanto, de ver o movimento do Estado capitalista em termos moralistas, mas enxergá-lo, do ponto de vista da utilidade que ele tem para o próprio capital privado-estatal em sua interatividade dinâmica, em seu processo de sobre-acumulação permanente. Se o desperdício gera esta ou aquela anomalia, cujo montante, no tempo, extrapola e forma as mais aberrantes situações que eliminam toda a ética possível e imaginável, tanto no plano econômico, como político, o problema tem que ser visto a partir da sua própria dinâmica intrínseca, e não de razões exteriores ditadas pelo falso moralismo. Se o capital, no processo de sobre-acumulação, elimina trabalho, a sobrevivência do trabalho, evidentemente, não ocorrerá por conta da expansão do capital, mas da força que leva tal expansão a se realizar no consumo de quem possa consumir no lugar do trabalhador. Trata-se de tarefa, portanto, do Estado, para salvar o próprio capital, visto que o consumo, tocado pelo trabalho, deixa de realizar por conta do avanço inexorável da produtividade.

Armas e subsídios agrícolas

A contratação de pessoal pelo Estado, por meio de concurso, bem como o aumento dos gastos públicos com programas sociais, em escala crescente, representam o mesmo movimento necessário que impõe a o aumento dos gastos governamentais na contratação de grandes obras para puxar a demanda global, visto que o empresário somente vai aos investimentos se vê, na sua frente, nitidamente, a eficiência marginal do capital, ou seja, o lucro. E como se dá essa expansão? Pelo aumento da quantidade da oferta de moeda, responsável, segundo Keynes, por gerar quatro situações simultâneas: aumento dos preços, redução dos salários, diminuição dos juros e perdão das dívidas dos empresários contraídas a prazo. Eis a resposta ineficiente do Estado, para permitir a expansão da eficiência privada.

A história econômica está aí mesmo para provar esse movimento dialético do capitalismo. Agora, querer moralizar o sistema, com o discurso midiático da grande imprensa de que o Estado deve seguir o mesmo rumo que o setor privado, de buscar a eficiência para aumentar a produtividade, tocada pelo avanço da ciência e da tecnologia, é querer que o avanço da ciência e da tecnologia entre em colapso na promoção do setor privado, sem que este disponha do Estado gastador para permitir que a produção privada se realize no consumo estatal – investimentos, gastos dissipadores etc.

Imagine se o governo norte-americano pregar a eficiência em suas ações – defendidas no Brasil com tanto ardor pelos editoriais da grande mídia… O que seria da indústria armamentista, que precisa da destruição proporcionada pelos gastos estatais? O que seria dos agricultores europeus e norte-americanos, se os governos, na Europa e nos Estados Unidos, não desperdiçassem bilhões de dólares e bilhões de euros em subsídios, para sustentar os preços agrícolas? Ou não é isso que impede a consecução da rodada de Doha?

Lucro na especulação financeira

Papo furado dos moralistas editorialistas representa falta de conhecimento da história econômica. Se os governos dos países ricos gastam bilhões de dólares e euros para garantir a máquina estatal, fabricante de lucros fictícios para os fabricantes de armas e de produtos agrícolas subsidiados, sem falar nos setores industriais, que têm acesso ao crédito barato e às ações governamentais economicamente favorecidas, em nome do equilíbrio entre produção e consumo, de modo a manter a taxa de emprego equilibrada, por que tanto alarde falso-moralista quando os presidentes do Brasil e dos demais países emergentes, sufocados pela exclusão social, produzida pelas próprias crises capitalistas geradas nos países cêntricos, repetem tais ações para se livrarem do caos social e da conseqüente luta revolucionária?

O que fazer com a transferência dos problemas dos países ricos para os países pobres, como ocorre no momento relativamente aos efeitos produzidos pela crise monetária-imobiliária americana? O governo dos Estados Unidos reduz os juros para evitar recessão, mas os aplicadores, com medo das desvalorizações do dólar, correm para os países emergentes, a fim de realizarem lucros. Sobre-valorizam, com esse movimento, as moedas dos países pobres e inviabilizam, conseqüentemente, a produção interna sustentável, enquanto incham as dívidas públicas internas que bloqueiam as atividades produtivas. Ou seja, como disse Marx, as crises capitalistas não têm início nos países pobres, mas, sim, nos países ricos. Estes, como fazem neste instante os Estados Unidos, tentam transferir os prejuízos para os ombros dos outros.

Que fazer? Se depender dos editoriais da grande mídia nacional, os governos emergentes, para salvar os países ricos capitalistas, enredados na contradição da sobre-acumulação de capital, teriam que ficar de quatro, comendo grama. São incapazes os editorialistas de declararem que a moralidade que defendem não passa de grossa imoralidade. Afinal, com a sobre-acumulação de capital na economia global, que leva os aplicadores a esquentarem negócios até que eles explodam, a fim de pularem para outros galhos, imediatamente, como forma de evitarem prejuízos prementes, a ordem é fazer lucro na especulação financeira porque, apenas na produção de bens e serviços, o capitalismo não consegue mais se reproduzir. Por que tentar fantasiar esse movimento com falso moralismo?

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Jornalista, Brasília, DF