Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Na guerra do bife, a imprensa cumpriu a obrigação

Ponto para a imprensa. A União Européia anunciou em 30 de janeiro a suspensão das importações de carne brasileira, um negócio de 1 bilhão de reais no ano passado. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva levou dois dias para reagir – e reagiu como se podia esperar: ‘Eles têm a vaca louca e ficam dando palpite aqui’. O ‘palpite’ foi uma decisão comercial de grande alcance, protecionista, sem dúvida, mas calculada e previsível. Por sua reação, o presidente Lula parece não ter lido os jornais. Se os tivesse lido, e no momento certo, estaria furioso não só com os europeus, mas principalmente com o ministro da Agricultura e talvez consigo mesmo.

Os jornais, principalmente os de São Paulo, deram todo o serviço a respeito do assunto, desde o surto de aftosa em Mato Grosso do Sul em 2005. Mostraram, na ocasião, com texto e fotos, a situação desastrosa da vigilância sanitária nas áreas de fronteira. Um ano depois, mandaram repórteres de volta à região. Os focos de aftosa haviam sido eliminados, mas não o risco. O desleixo continuava o mesmo.

Outras matérias foram feitas sobre o assunto e a última, bem recente, foi produzida pelo Estado de S.Paulo. Em mais de dois anos, a passagem de gado entre Paraguai e Brasil continuava absolutamente livre de qualquer barreira e de qualquer fiscalização.

Primeira página

Os jornais cobriram também, e com detalhes, o vaivém das missões sanitárias da União Européia. Noticiaram as cobranças dirigidas ao governo brasileiro e as advertências formuladas pelos europeus.

As pressões se tornaram críticas quando os europeus anunciaram a decisão de só importar carne bovina de cerca de 300 propriedades e pediram às autoridades de Brasília uma lista das fazendas. A exigência podia ser exagerada e injustificável tecnicamente, mas, segundo os funcionários da União Européia, o governo brasileiro não teria condições de fiscalizar um número maior e de atestar a procedência de toda a carne embarcada.

As cobranças não chegaram a esse nível de um dia para outro. A radicalização européia foi gradual. As autoridades agrícolas e sanitárias do bloco vinham sendo fortemente pressionadas por pecuaristas irlandeses, claramente inferiorizados diante dos concorrentes brasileiros. Aquelas autoridades poderiam ter resistido mais facilmente às pressões protecionistas se o governo brasileiro tivesse dado a tempo uma resposta firme e convincente em termos técnicos. Essa resposta nunca foi dada.

O embargo foi anunciado, afinal, quando o governo brasileiro apresentou à União Européia uma lista com cerca de 2.700 propriedades, uma relação improvisada e nada confiável, segundo os europeus. A suspensão das importações foi noticiada em primeira página por todos os grandes jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro, na quinta-feira (31/1). Fato histórico: uma encrenca no comércio internacional de carne bovina foi parar nas capas dos jornais, juntamente a redução de juros anunciada pelo Federal Reserve, o banco central norte-americano.

Reserva de potência

O aspecto protecionista da ação européia foi mostrado com clareza por todos os grandes jornais, mas o noticiário ficou imune ao vírus do nacionalismo. Os argumentos da União Européia foram registrados e pelo menos alguns jornais tentaram contar os tropeços das autoridades brasileiras.

A versão mais completa foi dada pelo Estado de S.Paulo na sexta-feira (1/2). Segundo essa reportagem, a maioria das fazendas foi incluída na lista na última hora por pressão dos governos de Minas Gerais e de Goiás. Uma semana antes da decisão européia, o secretário de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura, Inácio Kroetz, havia admitido, numa reunião na Sociedade Rural Brasileira, em São Paulo, não saber quantas propriedades seriam incluídas.

Mas a reportagem trouxe detalhes ainda mais apimentados. Segundo uma fonte não identificada, a idéia das 300 propriedades teria surgido depois de uma reunião entre funcionários brasileiros e europeus. O governo brasileiro, teria dito um funcionário de Brasília, só conseguiria auditar aquele número de fazendas.

Os autores da matéria, Márcia de Chiara e Marcelo Rehder, conseguiram levantar com rapidez uma boa história de como se montou em Brasília uma enorme trapalhada. Produziram para o dia-a-dia um relato muito mais substancioso – e saboroso – do que a maioria das chamadas matérias especiais de domingo, em geral mais longas do que interessantes ou importantes.

Durante a semana, os jornais se ocuparam de vários assuntos obrigatórios, como a decisão do Federal Reserve, a ata do Comitê de Política Monetária (Copom) e a balança comercial de janeiro, com novidades importantes sobre o crescimento das importações (muito mais veloz) e o das exportações. Cumpriram a obrigação sem sair da rotina. A reserva de potência dos jornais aparece muito mais claramente em coberturas como a da briga da carne entre Brasil e União Européia.

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Jornalista