Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Não dá pra não desconfiar

Em plena terça-feira de carnaval (16/2), a manchete da Folha de S.Paulo foi ‘Para Dilma, Estado deve ser também `empresário´’, com direito ao subtítulo ‘Pré-candidata quer que União não só induza, mas toque obras’ e a quatro parágrafos introduzindo o assunto. Depois, no caderno ‘Brasil’, vem o restante, tendo como título ‘Dilma faz defesa de Estado presente e tocador de obras’.


O texto da repórter Marta Salomon, da sucursal de Brasília, desde o início causa estranheza. Primeiramente, porque não se refere a uma entrevista concedida por Dilma Rousseff ao jornal, mas sim de uma que foi editada em livro, para lançamento durante o congresso do PT.


Depois, porque confunde grotescamente o Estado empresário, que faz brotar empresas estatais como cogumelos, com o Estado que cumpre sua missão de disponibilizar serviços essenciais à população. Se não, vejamos:




‘…a pré-candidata ao Planalto Dilma Rousseff defendeu a presença mais forte do Estado na economia, não só para induzir investimentos mas também para tocar obras. `O Estado terá, inexoravelmente, de reforçar seu segmento executor´, disse a ministra ao apresentar proposta que chamou de `bem-estar social à moda brasileira´.


‘A presença mais forte do Estado na economia será necessária, defende Dilma, para universalizar serviços de saneamento, melhorar a segurança pública, ampliar o número de unidades de atendimento na saúde e a oferta de habitação a partir de 2011. Mais de quarta parte da população (26,6%) ainda não dispõe de serviços de esgoto, de acordo com os dados oficiais mais recentes.’


Na sexta-feira (19/2), a Folha de S.Paulo dá a mão à palmatória, admitindo implicitamente que sua principal matéria de três dias antes estava bem no espírito do Carnaval: era um samba do crioulo doido, só que carente do talento e espirituosidade do imortal Sérgio Porto.


Erro aleatório


O jornal publica no ‘Painel do Leitor’ a refutação de Oswaldo Buarim Jr., assessor especial da Casa Civil, sem nada contestar. Isto, em jornalismo, significa que a réplica é inquestionável e não deixou espaço para tréplica. A Folha de S.Paulo não encontrou uma única palavra para dizer, que pudesse justificar a leviandade informativa por ela cometida.


Eis, portanto, o que evidenciou-se como a verdade cabal neste episódio:




‘Na entrevista (…) não há uma só linha que ampare a manchete da Folha de 16/2… O título distorce o enunciado da reportagem interna, que, por sua vez, é uma distorção da entrevista.


‘Para correta informação dos leitores, reproduzimos a declaração da ministra com seu sentido completo: `O Estado terá, inexoravelmente, que reforçar seu segmento executor, para universalizar o saneamento. Melhorar a segurança pública, a habitação, as condições de vida da população etc. Teremos que adotar novos e modernos mecanismos de gestão interna, que instituam o monitoramento, a verificação, relatórios e mecanismos adequados de controle´.


‘Nada a ver com `presença mais forte do Estado na economia´, como diz a reportagem. Tudo a ver com capacitação do Estado para atender as necessidades da população de maneira eficaz.

‘Também foi distorcido o sentido de outra afirmação da ministra: `Muitos diziam que só havia um jeito de as pessoas melhorarem sua situação: através do mercado. E que, se acreditássemos nisso, no final todos seríamos salvos´. Nesse ponto da entrevista, ela se refere a programas como o Minha Casa Minha Vida, conforme está claro na continuação do raciocínio, sonegada aos leitores do jornal: `Era simplesmente impossível fazer política de habitação, porque não se podia subsidiar. Como construir casas para a população com renda de até três salários mínimos se o custo da casa não é compatível com a renda? A equação simplesmente não fecha. O mercado jamais resolveria esse problema´.


‘Nada a ver com `presença mais forte do Estado na economia´. Tudo a ver com política de subsídios para habitação popular.’


O pior é que não se trata de um erro aleatório e inofensivo, mas sim de um que sugere ao leitor a criação de empresas que possam ser instrumentalizadas politicamente de diversas maneiras, inclusive como cabides de empregos.


Pedido de desculpas


Era a conclusão óbvia a que os perspicazes chegariam. E foi o que um leitor mineiro da Folha deduziu, em mensagem que o jornal alegremente publicou no dia seguinte:




‘Se me faltassem motivos para não votar na candidata Dilma Rousseff, a manchete de ontem já teria sido suficiente: `Para Dilma, Estado deve ser também `empresário´´. Não consigo deixar de imaginar a fila de petistas e peemedebistas, de inquestionável integridade, em busca de vagas na diretoria das novas estatais, com o firme propósito de promover `bem-estar social à moda brasileira´. O altruísmo desse pessoal eu conheço de outros carnavais.’


Cabe à sucursal de Brasília informar os leitores da Folha sobre os acontecimentos políticos, não ela própria fazer política, fornecendo armas propagandísticas para os opositores de qualquer candidatura presidencial.


O jornal está devendo um pedido de desculpas a Dilma, sua vítima habitual, de quem publica até ficha policial falsa; e a seu público, por mais esta manipulação explícita e desmascarada.

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Jornalista e escritor, mantém os blogs aqui e aqui