Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Nicolas Sarkozy e a mídia sob controle

Cécilia Sarkozy não foi votar no segundo turno das eleições presidenciais francesas de domingo (6/5). Problema dela ou assunto de interesse público?


Os limites entre a vida privada e a vida pública, a liberdade de informação e a ingerência do poder público (representado pelo novo presidente, Nicolas Sarkozy) sobre a mídia foram debatidos à exaustão nesses últimos dias na França. Tudo isso porque Madame Sarkozy não foi votar no dia 6 de maio.


O Journal du Dimanche, o único de circulação nacional que sai aos domingos, tinha o furo em mãos no sábado (12/5). Mas no momento do fechamento o diretor de redação, Jacques Espérandieu, resolveu não dar a notícia. Os jornalistas tinham checado a informação na seção eleitoral e o jornal tinha foto do livro de assinaturas, onde não constava a da mulher do agora presidente [ver abaixo carta da Redação a Arnaud Lagardère].


Espérandieu justificou-se dizendo que refletiu muito e acabou convencido de que o ato de votar faz parte ‘da esfera pessoal’, que deve ser respeitada pela mídia. Mas ele contou à Agence France Presse que recebera ‘telefonemas de pessoas, insistindo no caráter privado e pessoal da informação’ que seu jornal detinha.


Jornalismo e poder


O fato de um cidadão ou cidadã não cumprir seu dever cívico (facultativo na democracia francesa) pertence à esfera privada? Os jornalistas do grupo Hachette-Lagardère – que pertence a Arnaud Lagardère, fabricante de armas e acionista da Airbus, proprietário também de Paris Match e que apresentou em público Nicolas Sarkozy como seu ‘irmão’ – pensam que não. Na segunda-feira (14/5), eles reagiram com uma nota, assinada por dois sindicatos que congregam os jornalistas, dizendo-se revoltados e vítimas ‘de atentado à liberdade de expressão’.


O site de informação rue89.com, recém-criado por ex-jornalistas do Libération, pôs online no domingo mesmo a notícia do furo guardado na gaveta pelo Journal du Dimanche. Segundo o rue89.com – que começa a se impor como leitura obrigatória no panorama midiático francês – o próprio Arnaud Lagardère pediu para a notícia não sair. O site publicou as fotos do livro de votação com o nome de solteira de Cécilia Sarkozy e sem sua assinatura.


O comunicado dos dois sindicatos argumenta que como ‘as listas das seções eleitorais são públicas e o voto é um ato cívico e não pessoal, o assunto não é de ordem privada’.


A ONG Repórteres Sem Fronteiras também entrou no debate. Em comunicado publicado em seu site, manifestou ‘preocupação’ lembrando o antecedente grave acontecido num outro veículo de propriedade de Lagardère. No ano passado, o diretor de Paris Match foi demitido depois de ter publicado meses antes, na capa da revista, uma foto de Cécilia Sarkozy com seu novo namorado, quando ela estave separada de seu marido, em 2005. ‘Considerando que existem laços de amizade entre Nicolas Sarkozy e vários proprietários de grupos de imprensa, Repórteres Sem Fronteiras será extremamente vigilante nesse início de mandato e denunciará tudo o que parecer pressão vinda dos poderes públicos’.


Segundo RSF, essa história envolvendo a mulher do presidente mostra a necessidade de organizar um verdadeiro debate sobre as relações entre o poder político, os proprietários de veículos de comunicação e os jornalistas. ‘Mais do que nunca é necessário refletir sobre como preservar os interesses dos acionistas em investir nos veículos garantindo a independência da redação’.


Promiscuidade latente


Como no Brasil nenhuma redação tem veleidades de independência quanto aos acionistas, sobretudo quando ele é majoritário como os que dominam nossos principais jornais, esse problema não se coloca.


Na imprensa francesa, existem ‘patrons de presse’ como Édouard Rothschild (acionista principal de Libération) que recebem telefonemas de Nicolas Sarkozy para se queixar do tratamento que o jornal lhe dá. Laurent Joffrin, o diretor de redação escolhido por Rothschild para substituir Serge July, comanda uma redação extremamente anti-sarkozista, que pretende manter a independência total em relação ao poder. Durante a campanha, Joffrin assinou diversos editoriais criticando duramente o candidato da direita, seus métodos e seu programa.


Por outro lado, com a posse de Sarkozy, três jornalistas políticos foram recompensados esta semana por sua docilidade: Cathérine Pégard, chefe da editoria política da revista semanal Le Point foi nomeada conselheira do presidente e vai trabalhar no Palácio do Eliseu. Myriam Lévy, jornalista política do Figaro, é a conselheira em comunicação do novo primeiro-ministro François Fillon. E Georges-Marc Benamou, editorialista do jornal Nice-Matin, tornou-se conselheiro da presidência. Outro jornalista, o diretor-adjunto da campanha de Sarkozy, Laurent Solly, foi nomeado esta semana para a holding do grupo Bouygues, que pertence a Martin Bouygues, dono do canal de televisão campeão de audiência – TF1 –, da maior empresa de construção imobiliária da França e de uma empresa de telecomunicação.


Tudo isso parece o começo de uma grande promiscuidade entre uma certa mídia e o poder. Martin Bouygues não é o dono do iate Paloma, que hospedou por dois dias o presidente eleito, mas é um amigo do peito de Nicolas Sarkozy. Foi a própria mulher do presidente quem o apresentou como ‘nosso melhor amigo’.


***


Carta aberta da Redação do Journal du Dimanche a Arnaud Lagardère


‘O senhor interveio junto à diretoria da redação para que essa matéria não fosse publicada. Nós achamos que se trata de uma censura inaceitável, contrária à liberdade de imprensa. Os jornalistas do Journal du Dimanche contestam veementemente essa prática de uma outra época, aliás denunciada amplamente pelo conjunto de nossa profissão, na França e no estrangeiro. Num fim de semana, essa intervenção deu crédito às graves acusações feitas contra os títulos do grupo, acusado de ter favorecido a campanha de Nicolas Sarkozy. Nos últimos meses, contudo, o Journal du Dimanche vinha respeitando seu dever de imparcialidade. Desde domingo, sua imagem passou a ser gravemente questionada. Nosso site internet e o telefone central do jornal foram invadidos de mensagens de leitores indignados. No final, é a credibilidade do jornal e dos jornalistas que fica arranhada.


Suas relações privilegiadas com Nicolas Sarkozy não podem nos levar a renunciar novamente às exigências da nossa profissão. A redação do Journal du Dimanche, independente, reivindica o direito de recusar toda e qualquer subordinação que a prive de seu dever de informar.’

******

Jornalista