Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Números da Amazônia derrotaram a imprensa

2008 passará para a história da Amazônia como o ano em que os números derrotaram a imprensa. Ofuscada por estatísticas mensais da degradação florestal, a cobertura jornalística mal se deu conta da área total desmatada de 706,9 mil quilômetros quadrados, que já equivale a quase metade (45,1%) do Estado do Amazonas e corresponde a pouquíssimo menos que as superfícies terrestres da França, da Holanda e da Bélgica somadas. Também passou despercebido que a devastação praticamente dobrou — cresceu 97% — desde o fim de 1988, quando ela atingira 358,7 mil quilômetros quadrados.


Essa tendência da imprensa de ver as árvores sem enxergar a floresta foi predominante também nas duas últimas décadas, desde o desastroso início da elaboração de taxas anuais de desmatamento pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 1989 (ver ‘Enquanto a floresta queima, os números dançam‘, Nova Ciência, São Paulo, ano II, nº 7, 1990, agosto/setembro/outubro, págs. 32-36). Os índices anuais foram se acumulando, mas raramente os jornalistas os totalizavam.


Além de não se dar conta da expansão total da degradação da Floresta Amazônica, a cobertura jornalística chegou muitas vezes a comemorar a redução de taxas anuais de desmatamentos sem perceber que caía o ritmo dessa diminuição. Ou seja, houve anos em que a área total anual desmatada diminuiu, mas a imprensa não percebeu que a diminuição também diminuiu. Repetindo esse mesmo engano ocorrido no passado em relação aos dados de 1990, 1991 e 1997, tivemos várias manchetes que comemoraram os números de 2006 e 2007, que, comparados a 2005, já projetavam más notícias.


Confusão de dados


Essa distração midiática, que era antes anual, baseada nos anúncios do sistema Prodes (Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite), intensificou-se como um repetitivo e desgastado exercício mensal neste ano. Foi quando teve início a divulgação de índices mensais do sistema Deter (Desmatamento em Tempo Real), cuja finalidade não é obter dados precisos como o do Prodes, mas apoiar ações de fiscalização e controle de desmatamentos.


Num primeiro momento, houve a positiva iniciativa do governo de não liberar os dados do Deter enquanto não elaborava uma boa desculpa para eles (ver ‘Governo decide parar de segurar dados de desmatamentos‘, 10/7/2008). No entanto, o que aconteceu foi a banalização desses índices. Ela começou com a estratégia de comunicação do próprio Ministério do Meio Ambiente (MMA), dado o estilo excessivamente midiático do ministro Carlos Minc, com suas sucessivas entrevistas coletivas.


A imprensa em geral, em busca de novos títulos e lides, fez o arremate. Ela não só reproduziu de modo acrítico os pronunciamentos oficiais, como também tratou os números parciais do sistema Deter como se eles tivessem a mesma finalidade do Prodes, passando uma imagem otimista que não corresponde à realidade da extensão da devastação (ver ‘Imprensa se deixa pautar pelo governo‘, 2/9/2008).


Ofuscamento


Também quase nada foi dito sobre os dados do relatório de 2008 do Prodes que mostram o crescimento da degradação, em áreas não completamente desmatadas, de 14,9 mil para 24,9 mil quilômetros quadrados de 2007 para 2008. Em outras palavras, salvo pelas exceções, ‘passou batido’ que tivemos em um só ano um aumento de 61,1% de áreas degradadas sem desmate completo na Floresta Amazônica. Todos esses dados são acessíveis a qualquer cidadão com acesso à internet. Desse modo, a banalização da transparência se transformou em um mecanismo de ofuscamento.


Não bastasse esse ilusionismo numerológico, poucos foram os esforços significativos de reportagem para uma cobertura da Amazônia fora do rotineiro enfoque turístico ou exótico, mostrando-a não só em sua riqueza social e ambiental, mas também na dimensão do desastre da herança das políticas públicas para a região.


‘Eu costumo dizer que a gente não sabe o que tem na Amazônia porque a gente não pesquisa adequadamente. Nós estamos destruindo uma biblioteca cheia de livros que nós não lemos’, disse o cientista político Sérgio Abranches, diretor e colunista do site de notícias ambientais O Eco, no programa de televisão do Observatório da Imprensa exibido em 2/12 (ver ‘Amazônia na mídia: muita estatística, pouca reflexão‘).


Bons exemplos


Entre as raras exceções a essa tendência, destacou-se a reportagem de Leonencio Nossa e Celso Júnior ‘Eldorados da Exploração Infantil’, de 7/9/2008 no O Estado de S. Paulo. (Uma síntese de suas quatro páginas está em ‘Cidades amazônicas viram eldorados da prostituição infantil‘.) Eles mostraram a realidade da exploração de menores e das péssimas condições de vida em Coari (Amazonas), Juriti (Amapá) e Paraupebas (Pará), consideradas como localidades para novas iniciativas de negócios na região.


A própria imprensa da Região Norte não cobre os problemas locais, como bem explicou Chico Araújo, diretor da Agência Amazônia de Notícias. No já citado programa do Observatório da Imprensa (em 2/12/), ele afirmou que ‘quando trabalhava para o Estado de S.Paulo, jornais de Manaus e outras cidades da Amazônia esperavam a Agência Estado distribuir o boletim informativo com notícias sobre a região para elaborar a manchete dos jornais’.


Enquanto isso permanece, os veículos dos outros estados mal investem em equipes permanentes de reportagem nessa região. Mas existem ali algumas iniciativas de bom jornalismo na internet, além da agência dirigida por Araújo. Por exemplos, o site Amazônia, da ONG Amigos da Terra, o blog do jornalista Altino Machado, sediado em Rio Branco (AC), e o Jornal Pessoal, de Lúcio Flávio Pinto, que após 21 combativos anos de artesanal circulação quinzenal impressa em Belém (PA), sem venda de espaço publicitário, ganhou em 2008 seu próprio espaço na internet. Talvez seja essa a única boa notícia sobre a imprensa em relação à Amazônia neste ano.

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Jornalista especializado em ciência e meio ambiente